A demonologia no Antigo Testamento

A demonologia no Antigo Testamento

I. Abordagem Bíblica

A demonologia no Antigo Testamento.[1]

O Antigo Testamento apresenta, em relação aos demônios, uma profunda diferença em comparação com a literatura religiosa antiga dos povos vizinhos de Israel bem como com os escritos do Judaísmo tardio. A diferença principal está na sobriedade. A maior parte da literatura do Oriente antigo e do Judaísmo tardio apresenta uma Demonologia exuberante. O Antigo Testamento, porém, concede aos demônios um espaço extraordinariamente restrito, limitando-se a nos instruir sobre a existência desses seres e sobre suas seduções, bem como sobre os meios de nos precaver contra elas.

A Demonologia do Velho testamento é muito fragmentária. Encontram-se esporadicamente alusões a uma figura com traços diabólicos somente no capítulo terceiro do Gênesis será introduzido um personagem, descrito como adversário de Deus e do homem, mas quase todo o resto do A.T. guardará silêncio sobre esse episódio, que só será recordado muito mais tarde, nos últimos anos que precederam imediatamente a era cristã.

Tudo aquilo que os povos pagãos e politeístas do Oriente antigo atribuíam aos demônios, a Bíblia relacionava diretamente com Javé: doenças, flagelos, morte. É Javé quem causa a lepra de Maria, irmã de Moisés (Dt 24,9), quem castiga os violadores da Lei (Nm 11,1ss), quem envia contra o povo serpentes ardentes (Nm 21,6), quem entrega Israel aos inimigos (Jz 2,14; 3,8 ).

Sem fazer distinção entre querer ou permitir, o A.T. apresenta Deus como um “tentador” não só no sentido em que ele “tenta” Abraão (Gn 22,1) para provar seu amor (Gn 22,16), mas no sentido que “endurece” o Faraó (Ex 4,21, cf. Rm 9,18) sem negar com isso a culpabilidade humana, porque é também o Faraó quem “endurece seu coração” (Ex 7,13.22). Do mesmo modo o “espírito” que em 1Sm 16,14 “cai sobre Saul” não é apresentado como um demônio; é um “espírito mau enviado por Javé” (16,14), ou um “mau espírito de Deus” (16,15). Um “espírito mau” análogo é enviado por Javé entre Abimelec e os senhores de Siquém para incitá-los à revolta contra o rei de Israel (Jz 9,23) e é a “cólera de Javé” que em 2Sm 24,1 incita Davi a fazer o recenseamento de Israel e de Judá, o que lhe acarretará a acusação de “grande pecado” e “grande loucura” (2Sm 24,10).

Esta última passagem é muito significativa porque muitos séculos depois o Cronista, referindo o mesmo episódio, não mais atribuirá esta tentação a Javé nem a sua “cólera”, mas a Satanás (1Cr 21,1) que desempenha assim a função de simples instrumento de Javé, análogo ao Anjo que ele utiliza para “castigar Jerusalém” (1Sm 24,16 = exatamente como 1Cr 21,15); um destes “anjos exterminadores” que aparecem tantas vezes na Bíblia: anjos enviados para castigar Sodoma (Gn 19,13); “destruidores” encarregados de ferir os primogênitos dos egípcios (Ex 12,23); anjo de Javé que abate 185.000 assírios (2Rs 19,35, como em 2Cr 32,21); executores da Cidade Santa contemplados por Ezequiel (Ez 9,1ss) ou o anjo do Senhor que mata os dois velhos caluniadores de Suzana (Dn 13,55 e 59).

a) Satanás o adversário do desígnio salvífico de Deus sobre a humanidade.

O Antigo Testamento fala com muita parcimônia sobre Satanás e sempre de tal modo que salvaguarda plenamente a transcendência do Deus único. Dessa maneira se evita cuidadosamente tudo o que poderia dar idéias de um dualismo ao qual Israel se sentia fortemente solicitado.

Satanás aparece menos como um adversário do que como um dos anjos da corte de Javé que desempenha no tribunal celeste uma função análoga a do acusador público, encarregado de fazer respeitar na terra a justiça e os direitos de Deus.

No entanto, sob esse pretenso serviço de Deus, já se discerne, no prólogo do livro de Jó (1-3), uma vontade hostil, senão diretamente a Deus, pelo menos ao homem e a sua justiça. Satanás não crê no amor desinteressado (Jo 1,9); sem ser um “tentador” ele espera que Jó acabe sucumbindo; no seu íntimo ele deseja a queda de Jó, com a qual é óbvio que ele haveria de se alegrar.

Sob o nome de Satanás (hebraico =. satan, o adversário), ou o Diabo (grego = Diábolos, o caluniador), ocorrendo os dois nomes quase que com igual freqüência no N.T., a Bíblia designa um ser pessoal, invisível por si mesmo, mas cuja ação ou influência se manifesta quer na atividade de outros seres (demônios ou espíritos impuros) quer na tentação.

Em Zac 3,1-5, o “Acusador” transforma-se num verdadeiro Adversário dos desígnios de amor de Deus sobre Israel. Para que Israel possa salvar-se o Anjo de Javé deve impor silêncio a “Satanás”, em nome do próprio Deus: “Que o Senhor te castigue” (Jud 9).

b) Satanás no Livro de Jó

Mesmo no livro de Jó 9 (cc 1 e 2) Satanás não se identifica com a figura tradicional de Diabo, apesar da tradução dos Setenta (Diábolos), como em 1Cr 21,1. Aparentemente Satanás só age no interesse de Deus e naturalmente com sua autorização. As provas que caem repetidamente sobre Jó vêm diretamente de Deus (Jó 1,11; 2,5).

Satanás só aparece no prólogo do Livro de Jó ( Jó1,6-7 – fala em Adversário TEB) como um instrumento dócil de Deus, e no corpo do livro propriamente dito não se falará mais dele, mas somente de Deus (p. ex., Jó 6,9; 7,19; 9,19; 14,19s; 16,12; 19,6-22, etc.). Mas por detrás desse aparente serviço de Deus se entrevê uma hostilidade raivosa. Satanás hostiliza não só os bens de Jó, ou sua carne, mas sua alma, sua justiça na qual não acredita.

Por detrás da ação da mulher de Jó, que quer induzir seu marido a amaldiçoar a Deus, pressente-se secretamente a presença daquele que deseja a queda de Jó. O “Acusador” torna-se quase um “Tentador”. O mesmo papel é atribuído a Satanás na visão na qual Zacarias contempla o juízo de Israel representado pelo Sumo Sacerdote Josué. De pé, à direita do Anjo de Javé, está Satanás “para acusar”. Mas Deus não aceita sua acusação. Tiram as vestes de luto de Josué para revesti-lo com “hábitos de festa” e com as insígnias de seu sacerdócio (Zac 3,1-5). A ordem proferida pelo Anjo de Javé a Satanás é quase um grito de vitória (Zac 3,2: o Senhor te confunda) e o será no contexto da epístola de Judas: “Que o Senhor te castigue!” (Jd 9).

c) Em alguns outros Livros do Velho Testamento

No primeiro livro dos Reis se lê uma cena semelhante relatando a visão do profeta Miquéias: “o espírito de mentira” faz as vezes de Satanás, mas nada mais é que um simples agente de Javé, cujas ordens executa (1Re 22,19-22).

Desse modo, a comparação de Jó 1-2, Zac 3,1-5 e 1Re 22, 19-22 não é menos instrutiva que a comparação de 2Sm 24,1 com 1Cr 21,1. Ela demonstra o cuidado com o qual a Revelação quis salvaguardar a transcendência do Deus único e evitar tudo o que teria podido inclinar Israel para o dualismo que reinava no seu contexto cultural.

Com efeito, aquele que na mitologia do Próximo Oriente antigo era representado como o rival do Deus Supremo, na Bíblia nada mais é que um puro instrumento de Javé, e nas raríssimas vezes nas quais (a partir do livro de Jó) recebe um nome, é apenas para desempenhar uma função quase oficial no tribunal divino: o de Acusador público.

Por essa mesma razão, quando a Bíblia alude a certos demônios das crenças populares do Próximo Oriente, que na versão grega dos Setenta são traduzidos por “daimónia”, ela se abstém de fazer deles seres fabulosos, assimilando-os a simples animais selvagens, característicos das regiões desertas, nas quais ela os colocava (Is 13,21-22; 34,14; Jer 50,39ss). Até a “Lilith”, autêntico demônio assírio, parece que não passa de uma espécie de coruja para o Autor de Isaías 34,14. Se o livro de Tobias menciona esporadicamente e de modo muito antropomórfico o “demônio Asmodeu” que, expulso pelo odor do peixe, é atado e vinculado pelo anjo Rafael nas regiões do Alto Egito (To 3,8 e 8,3), devemos notar contudo que o jovem Tobias como o próprio Rafael assimilam inteiramente a “libertação” de Sara (cf. 6,8) com a “cura” do velho Tobias (12,3).

Quanto a Azazel mencionado no Levítico a propósito do ritual da Grande Expiação (Lv 16,8, 10,26) que a versão siríaca parece identificar com o chefe dos demônios da literatura judaica apócrifa (por exemplo: Henoc), nada mais é na Septuaginta bem como na Vulgata, do que um animal encarregado de transportar ao deserto os pecados de Israel; por causa dessa sua função é chamado “bode expiatório”. Mas mesmo aí se trata de vestígios de um rito antiquíssimo, conservado em razão de seu valor sugestivo mas purificado de todas conotações do paganismo: não somente o bode “enviado” a Azazel não é imolado, nem oferecido a Azazel, mas o rito não tem também a finalidade de se proteger contra ele. Azazel não desempenha nenhum papel.

d) Satanás no Gênesis

Embora Satanás quase não seja mencionado no curso da História de Israel, contudo teve um papel decisivo nos primórdios da história da humanidade. O leitor da Bíblia sabe que um ser misterioso desempenhou uma função capital desde as origens. O Gênesis não pronuncia o nome de Satanás, fala apenas da “Serpente”. Criatura de Deus “como as outras” (Gn 3,1) esta serpente é, contudo dotada de ciência e habilidade que ultrapassam as do homem. Sobretudo, desde sua entrada em cena é apresentada como o inimigo da natureza humana. Repleta de inveja da felicidade do homem (cf. Sb 2,24), consegue seus fins utilizando já as armas que serão sempre as mesmas: astúcia e mentira, “o mais astuto dos animais do campo” (Gn 3,1), “sedutor” (Gn 3,13; Rm 7,11; Apc 12,9; 20,8ss), “homicida e mentiroso desde a origem” (Jo 8,44). O livro da Sabedoria dirá qual é o verdadeiro nome desta Serpente: é o Diabo (Sb 2,24).”

A narração do Gênesis, sem pronunciar o nome de Satanás sem dar informação alguma sobre sua natureza, sem explicar sua origem, consegue desmascarar o personagem e fornecer-nos informação suficiente sobre tudo que devemos conhecer para nossa vivência concreta. Com efeito, o N. T. mesmo não nos ensinará quase nada que não esteja contido em germe nesta narração que todos os exegetas unanimemente contam entre as mais antigas.

O Gênesis tem a preocupação de prevenir contra qualquer perigo de dualismo: a serpente é uma criatura de Deus: “um dos animais do campo que Deus tinha feito” (Gn 3,1; 3,14), o qual pagará caro por ter ousado opor-se a Deus (Gn 3,14). Mas é também uma criatura à parte, dotada de uma ciência e de uma habilidade que ultrapassam de muito as do homem: sabe coisas que Adão e Eva ignoram (Gn 3,4) e, sobretudo como proceder para arruinar a obra de Deus (Gn 3,2-5).

Será que age somente por inveja da felicidade da humanidade com a intenção perversa de lhe arrebatar o privilégio divino da imortalidade, como o sugere Sab 2,24? Ou também poderia ser por ódio do próprio Deus que procuraria atingir ao menos em sua obra, destruindo a harmonia estabelecida entre o Criador e sua criatura.

Além de seu desígnio, a Bíblia desmascara também seu estratagema: ela apresenta-se a princípio como amiga, preocupada exclusivamente com os interesses do homem; suas primeiras palavras não despertam nenhuma desconfiança no espírito de Eva que responde com toda ingenuidade. Mas apenas iniciado o diálogo, prevê-se já sua meta. A serpente começa a vacilar: não crê na seriedade da proibição nem na ameaça: simples tática de Deus para salvaguardar suas prerrogativas; muito ingênuo quem imagina que Deus procure o interesse do homem; pelo contrário, é transgredindo a proibição de Deus que ele se tornará “como Deuses” conhecendo o bem e o mal, isto é, “capaz de decidir por si mesmo o que é o bem e o mal, e pautar suas ações em conseqüência com essa autonomia”.

A serpente triunfa no momento em que o homem começa a duvidar do caráter incondicional das ordens de Deus e da pureza de suas intenções de amor. Vitória aliás de pouca duração: será a primeira a ser punida; somente ela é amaldiçoada (Gn 3,14) e perceberá, como cúmulo de humilhação, que a humanidade, sobre a qual pensara alcançar um fácil triunfo, acabou por triunfar sobre ela (Gn 3,15). Esta vitória da humanidade sobre Satanás será precisamente o objeto da Revelação do N.T.

Autor: Ministério de Formação Paulo Apóstolo

 

[1] Texto fundamentado em O Demônio e Satanás na Sagrada Escritura por Stanislas Lyonnet,sj. Teólogo e biblista de grande reputação. Lyonnet é um escritor extraordinariamente fecundo e seus textos, que em geral abordam uma temática relacionada com a Demonologia (o drama de nossa salvação sobrenatural: pecado, liberdade e redenção), estão dispersos em inumeráveis revistas e publicações teológicas.

[2]L.De Grandmaison, in “Jésus – Christ”

  • imagem: https://agendaglobal21.files.wordpress.com/2011/07/anjo-maligno.jpg

Bibliografia

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Catecismo da Igreja Católica

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Bauer, Johannes B. – Dicionário de Teologia Bíblica, Editora Loyola – 1988

Latourelle, René e Fisichella, Rino – Dicionário de Teologia Fundamental, Editoras Vozes e Santuário – 1994

Quintanilla, Miguel Angel – Breve Dicionário Filosófico, Editora Santuário – 1996

Rahner, Karl – Curso Fundamental da Fé, Edições Paulinas, 1989

Vella, Elias frei – O diabo e o exorcismo, Palavra & Prece Editora Ltda – 2004

Kasper, Walter e outros – Diabo Demônios Possessão, Edições Loyola – 1992

Balducci, Corrado sj – O diabo, “vivo e atuante no mundo”, MIR Editora – 2004

Terra, J.E. Martins sj  –    Existe o diabo? Respondem os teólogos, Edições Loyola – 1975

  • A angelologia de Karl Rahner, Editora Santuário – 1996
  • Revista de Cultura Bíblica nº 17 – 18, 1981, Editora Loyola – LEB (coordenador)

 

Comunidade Javé Nissi

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