É possível a possessão diabólica?

É possível a possessão diabólica?

As possessões diabólicas descritas no Evangelho possuem essencialmente uma “significação” messiânica, escatológica, soteriológica. Nesse sentido constituem fatos histórico-salvíficos exclusivos do Evangelho, indissociáveis da pessoa de Cristo, que não se repetem absolutamente.

Outra questão muito diferente seria esta: São possíveis hoje casos autênticos de possessões diabólicas? O antiquíssimo “lógion” (ditos anteriores à redação final dos Evangelhos) de Marcos no qual o texto Mc 16, 14 se firma, revela a impossibilidade de fato. Diz o “lógion” de um manuscrito que é intercalado entre os vv 14 e 15:

“Estes disseram em defesa própria: ‘Este século de impiedade e incredulidade jaz sob o poder de Satanás, que não deixa a verdade e o poder de Deus serem acolhidos pelos espíritos impuros; por esta razão revela agora sua justiça’. Eles diziam isto a Cristo, e Cristo lhes respondeu: “Está cumprido o termo dos anos do poder de Satanás, mas outras coisas terríveis se aproximam. E eu fui entregue à morte por aqueles que pecaram, a fim de que eles se convertam à verdade e não pequem mais, a fim de que sejam herdeiros da glória, da justiça, glória espiritual e incorruptível que existe no céu’”. – Ver o comentário letra”p” da TEB no texto Mc16,9, também a Bíblia de Jerusalém, comentário “f” no mesmo texto.

Esse “lógion” exprime a convicção dos primeiros cristãos de que pela vitória de Cristo terminou o tempo da prepotência de Satanás. Os cristãos foram libertados do poder de Satanás. Atos 26, 18: São Paulo é enviado por Cristo para converter os pagãos do “poder de Satanás a Deus”.

Colocando, porém a questão não em termos de uma possibilidade de fato, mas de possibilidade metafísica de uma possessão diabólica, a tradição católica responde afirmativamente embora haja alguns católicos que respondem negativamente.

Ambas as respostas tanto a afirmativa como a negativa são verdadeiras. Não são contraditórias porque não versam sobre o mesmo conceito de “possessão”.

De fato há um conceito vulgar de possessão diabólica que é absolutamente inaceitável porque metafisicamente impossível. Há uma concepção vulgar de possessão (semelhante a que foi explorada no livro e filme “O Exorcista”) que é absolutamente mítica, fantástica e impossível. Baseando-se talvez em algumas expressões antropomórficas da Bíblia que fala, referindo-se ao demônio, de “entrar” e “sair” no homem, e interpretando-as materialmente e univocamente alguns imaginam a possessão em termos de presença local, ou circunscritiva.

Essa é a concepção vigente no baixo espiritismo quando se fala em “baixar o espírito”, ou “espírito encarnado”. Aliás, aqui, nem se pode falar de “concepções” porque nem sequer se pode conceber tais “conceitos”; trata-se de imagens grosseiras, frutos da fantasia. Somente um ser corporal pode estar presente localmente, pode entrar, sair, “baixar”, etc. Um espírito não ocupa lugar. Muitas pessoas quando negam a possibilidade de possessões estão de fato negando esse esquema vulgar. E nisso têm razão! Estão, porém negando uma caricatura da possessão diabólica.

Noutro extremo oposto, há também uma concepção generalizada entre as pessoas cultas que, baseando-se numa concepção deformada da metafísica aristotélica sobre “forma separada”, concebem os anjos e demônios como seres não somente absolutamente imateriais, mas também sem nenhuma relação com o mundo material, sem qualquer possibilidade de um interrelacionamento pessoal com os homens. Desse modo os anjos seriam verdadeiras “mônadas[1] sem janelas” incapazes de fato de qualquer ação em nosso universo.

Muitas pessoas que negam a existência de anjos e demônios estão de fato refugando essas idéias concebidas pelo seu próprio espírito. E nisto têm razão!

a) Os anjos

A Teologia Católica e a revelação bíblica apresentam os anjos como criaturas e, por conseguinte em relação com todo o universo. A Bíblia não apresenta uma visão dualista do universo, pelo contrário ela nos revela a unidade complexa da realidade material e espiritual, finalizado em Cristo Deus-Homem; visão bíblica que supera todos os conhecimentos puramente científicos. Todo homem é centro do mundo, ponto de convergência do universo material e espiritual. De igual modo, todo anjo está no centro do universo, relacionado serviçalmente com a totalidade do criado por Deus.

Os anjos formam o contexto e a ambiência do homem na História da Salvação. Muito longe de serem duas grandezas heterogêneas, anjos e homens convergem em seu caráter de criaturas e convergem também para o mesmo e único fim sobrenatural. Cristo enquanto homem é plenitude de toda criação, também da angélica; Cristo é cabeça dos anjos. Karl Rahner chega a afirmar que anjos e homens são duas espécies do mesmo gênero (espírito finito).

Por conseguinte, conforme a Revelação Cristã, os anjos são seres ordenados essencialmente à História de nossa Salvação. É isso que significa a palavra “angelus”: “mensageiros enviados aos homens”. Logo bem longe de serem mônadas, sua ação essencial é comunicar-se com os homens.

  1. b) Presença circunscritiva, definitiva, repletiva

Para entender como os demônios podem estar presentes num possesso será útil recordar com S. Tomás os três modos possíveis de presença num lugar: presença circunscritiva, definitiva e repletiva. Conforme esses três modos estão num lugar respectivamente o corpo, o anjo e Deus.

1ª. A presença circunscritiva ou local, ou quantitativa, é própria de um corpo que está num lugar adequando suas dimensões com as dimensões do lugar. O corpo ocupa o lugar por contato de quantidade dimensiva, de tal modo que cada parte sua corresponde à respectiva parte do lugar e é por ela delimitada. É somente nesse sentido que se pode usar univocamente os verbos que significam uma situação espacial ou temporal: entrar, sair, sentar, penetrar, “baixar”, etc.

2ª. Presença definitiva ou operativa, é a presença própria do espírito finito (anjo, demônio) que está num lugar por um contato virtual, isto é, por um contato operativo, sem ocupar o lugar e sem ser por ele circunscrito. O anjo está presente onde ele age, isto é, em virtude de sua ação num lugar pode-se designar sua presença aí.

Alguns autores medievais definem assim a presença definitiva: “é a presença ‘por contato virtual’, isto é, pela causalidade que o ente localizado exerce num lugar. Esta causalidade pode ser causalidade formal: a presença da alma humana no corpo informando-o e dando-lhe a subsistência; ou então causalidade efetiva ou operativa, a presença de um anjo ou demônio agindo num homem”.

3ª. Presença Repletiva é a presença do espírito infinito, Deus. Deus é onipresente, isto é, não é circunscrito de modo algum pelo espaço, mas ocupa todo o espaço com todas as suas partes. Esta presença é ao mesmo tempo imanente e transcendente a todo o universo criado e por isso denomina-se onipresença (S. Th I q. 52, a. 2).

Talvez alguém poderá pensar que estas distinções tenham “cheiro de arqueologia teológica”. O que importa, porém, é que ela ajudará a entender uma outra explicação da possessão diabólica que se encontrava por vezes em certos manuais de catecismo.

Alguns autores explicavam a possessão diabólica dizendo que o demônio apodera-se de um homem como se fosse a sua alma, tomando o lugar dela, de forma que a vítima perde sua personalidade (sua consciência, liberdade e responsabilidade) e através do seu corpo age o espírito maligno. Desse modo o espírito maligno exerceria uma causalidade formal no corpo do indivíduo. É de um modo semelhante a esse que muitos teóricos do espiritismo explicam a encarnação de espíritos bem como a teoria da metempsicose ou reencarnação sucessiva das almas humanas.

Essa explicação também carece de fundamento racional. Ela fundamenta-se no dualismo platônico que concebe a alma e o corpo como duas substâncias completas e considera o homem como um espírito encarcerado na matéria. Santo Tomás já tinha posto em evidência o absurdo dessa teoria que destrói a unidade substancial do homem. Rigorosamente falando, a alma não está presente no corpo, mas a alma mesma é a “forma” (atualidade) do corpo e o corpo é a epifania da alma. Toda atualidade do corpo (potencia) lhe advém da alma (ato) que lhe comunica sua própria identidade pessoal e subsistência. Por isso alguns autores medievais explicando (dentro da mais tradicional teologia escolástica) o problema da nossa ressurreição, diziam que a questão tão disputada de saber se ressuscitarei com o corpo que tenho agora ou outro corpo era absolutamente irrelevante. Toda minha atualidade de ser e identidade pessoal, diziam esses autores, vem de minha alma, por conseguinte se minha alma informa qualquer matéria, comunica-lhe a minha identidade pessoal e, por conseguinte, esse será o “meu” corpo.

Por mais simplista que possa parecer tal explicação, ela certamente não é mítica e é plenamente inteligível. Em última instância ela não difere da explicação de alguns teólogos contemporâneos que descrevem a morte não como separação da alma e do corpo, mas como glorificação ou ressurreição da carne que passa para uma nova dimensão de ser, conforme 1Cor 15, 44.

Por conseguinte, a teoria que explica a possessão como “informação” do corpo humano pelo espírito maligno é totalmente errônea. Um espírito finito exercer uma causalidade formal num “outro” indivíduo é contraditório, pois a identidade de ser advém precisamente da causa formal.

Este mesmo raciocínio mostra a impossibilidade de reencarnação ou transmigração da alma de um para outro indivíduo ou então a encarnação de uma alma “desencarnada” num médium. Todas essas concepções espíritas que se apresentam como defensoras do espiritualismo reduzem na verdade o “espírito” a uma entidade material e mitológica que pode ser “baixada” ou despejada sucessivamente em diversos recipientes. Somente um ser material pode ocupar lugar, pode dimensionar seu ser com as dimensões do lugar ocupado. Um espírito enquanto tal não pode perder sua identidade, visto que espírito significa precisamente atualidade ou identidade de ser.

Uma última hipótese aventada para explicar a possessão diabólica e que é talvez a mais absurda é a que compara a causalidade do espírito maligno no possesso com a ação divina na graça ou a presença do Espírito Santo na alma do justo.

Comparar a causalidade divina nas criaturas com uma causalidade finita de uma criatura é algo metafisicamente intolerável. Conceber o agir divino como se fosse exterior e paralelo ao agir da criatura foi o grande equívoco derivado de uma concepção antropomórfica[2] da causalidade divina que alimentou durante séculos a controvérsia entre duas grandes escolas teológicas na discussão sobre o problema da predestinação e do modo de conciliar a liberdade humana com o domínio absoluto de Deus.

O grande equívoco dessas controvérsias foi conceber a causalidade divina ao modo da causalidade finita das criaturas. Ora uma criatura não pode fazer existir, dar o ser; ela age sempre sobre algo que existe independentemente dela e fora dela, transformando-o. Jamais uma criatura é imanente[3] ao ser de outra criatura. As criaturas são exteriores umas, às outras!

Ora, nós só temos experiência da ação das criaturas humanas, não da ação de Deus. Daí decorre o perigo de imaginar a ação da graça de Deus e a ação da vontade livre humana como se fossem ações de duas criaturas, isto é, imaginá-las como duas forças exteriores uma a outra e justapostas. Nesse caso não se explicaria de fato nem a liberdade humana nem o domínio de Deus, porque se tudo viesse de uma, seria porque a outra não estaria fazendo nada (p. ex.: quando dois cavalos puxam um carro, se todo o movimento é dado por um é porque o outro nada está fazendo).

Por conseguinte, a causalidade divina se situa num plano infinitamente diverso do agir da criatura.

A causalidade divina (a graça, a in-habitação do Espírito Santo) se situa na prolongação da causalidade transcendente criadora de Deus (causa primeira).

É o ato criador de Deus que dá existência a todas as criaturas, que faz existir, por conseguinte a liberdade criada, enquanto ser livre, e que faz existir o próprio ato de querer enquanto livre. Logo a ação divina não suprime a liberdade do agir humano livre, mas dá-lhe a existência, faz ser aquilo que é, isto é, livre.

A ação criadora de Deus enquanto causa primeira é absolutamente transcendente, pois é fonte do ser de todas as criaturas. Mas a transcendência criadora da causa primeira infinita é imanente a todas as criaturas, pois age naquilo que é mais íntimo aos entes criados, dando-lhes o próprio existir.

No plano sobrenatural também a graça eficaz é o próprio ato livre, enquanto dependente de Deus.

É no prolongamento da ação criadora transcendente que se deve compreender a operação salutar pela qual Deus sustenta a ação humana. Só Deus faz existir, só ele comunica o ser, e desse modo ele é aquilo que há de mais interior ao ser da criatura visto que ele é a própria fonte de seu ser, de tal modo que o agir (o querer) da criatura livre vem todo dela e ao mesmo tempo todo da ação criadora de Deus que o faz existir. Nossa ação livre só existe recebendo a existência de Deus. Fil 2, 13: “É Deus quem opera em nós o querer e o fazer”.

A graça sobrenatural (a in-habitação do Espírito Santo) é imanente à nossa vontade livre como a origem mesma do seu ser, como aquilo mesmo que a faz existir de maneira sobrenatural ou divinizada.

Seria antropomorfismo intolerável pensar que nossos atos meritórios provêm de um lado de nós e de outro, da graça que se acrescentaria e agiria sobre ela do exterior.

Nossos atos livres provêm inteiramente de nossa liberdade que é, pois, verdadeiramente livre, mas, por isso mesmo igualmente provém inteiramente da ação criadora de Deus, que faz existir essa liberdade conforme a sua natureza própria, que é ser livre e, quando se trata de atos sobrenaturais, provém então inteiramente da graça que faz existir nossa liberdade segundo uma realidade de graça, isto é, de maneira sobrenatural ou divinizada.

Nossa liberdade seria eliminada por uma ação que se exercesse sobre ela do exterior. Não é, pela graça que se encontra imanente a ela, na própria raiz do seu ser; visto que ela é obra de Deus que a faz existir.

Estas reflexões teológicas sobre o modo exclusivo de agir da causalidade divina nos mostram com toda evidência como é absurdo querer explicar as possessões diabólicas de um modo análogo com a habitação do Espírito Santo na alma dos justos.

Por conseguinte, o único modo para explicar a possessão diabólica é exatamente aquele insinuado pela Sagrada Escritura: isto é, trata-se da ação exercida eficientemente por um demônio, isto é, por um ser que é espírito, por conseguinte inteligente e livre, mas que é também criatura, por conseguinte, que tem de algum modo uma dimensão no universo, visto que foi criado essencialmente ordenado ao mundo e, concretamente, à história da Salvação.

Ora, o único modo apto para uma criatura espiritual agir, enquanto tal, sobre outra criatura espiritual é através dos sentidos; mais concretamente, através da fantasia. Vimos como a tentação, ou as comunicações angélicas se situam também nessa mesma linha. Por isso, as tentações são uma síntese de uma ação objetiva demoníaca e de uma experiência subjetiva ativa do homem. É desse modo que se processam todos nossos conhecimentos e vivências humanas. Há, por conseguinte, na descrição que o homem faz da tentação uma grande contribuição que vem de sua compreensão das coisas, de modelos estruturados pelo seu psiquismo e por seu ambiente cultural.

  1. c) A possessão

A possessão no sentido técnico do termo não é, porém uma tentação. A tentação visa levar ao pecado e por isso mesmo não pode destruir a liberdade sem a qual não há responsabilidade e, conseqüentemente, pecado. A possessão, pelo contrário, suspenderia o uso da liberdade e da responsabilidade pessoais. Por isso mesmo é difícil entender qual possa ser seu significado ou sua finalidade. Evidentemente não se trata de um castigo imposto ao possesso. Vimos que no Evangelho as possessões tiveram uma significação cristológica. Tanto as curas miraculosas como os exorcismos realizados por Cristo foram um “sinal” da chegada do Reino de Deus, da destruição do império de Satanás e uma antecipação da salvação escatológica.

Hoje, porém, seria difícil encontrar uma explicação de caráter geral. Sua significação só poderá ser deduzida a partir do contexto histórico – cultural – religioso de cada caso concretamente.

A possessão pelo diabo é uma séria atividade diabólica. Como indica o nome “possessão diabólica”, consiste numa extrema ação do diabo, sobre uma pessoa “através dos sentidos; mais concretamente, através da fantasia”, a ponto de obter um total e despótico controle de seu corpo e de suas faculdades naturais (anímicas). A vítima torna-se um instrumento cego do diabo, e por isso a palavra grega “energumen” era também usada para designar uma pessoa possuída por um espírito maligno. Contudo, uma vez que a pessoa possuída não tem consciência de suas ações durante o ataque diabólico – e muito menos capaz de exercer qualquer controle – a vitima de possessão não é responsável por suas ações, ainda que ultrajantes, maldosas ou perversas.

Como já vimos acima, a teoria que explica a possessão como “informação” do corpo humano pelo espírito maligno é totalmente errônea. Um espírito finito exercer uma causalidade formal num “outro” indivíduo é contraditório, pois a identidade de ser advém precisamente da causa formal.

A possessão diabólica, portanto não é a substituição do espírito da pessoa da qual o corpo é a atualização, pelo demônio, pois se isso ocorrer teríamos a destruição da pessoa, o que não é certamente vontade de Deus.

Neste estudo, quando nos referirmos à possessão, sempre será dentro deste significado: uma extrema ação do diabo sobre uma pessoa a ponto de obter um total e despótico controle de seu corpo e de suas faculdades anímicas.

Existem dois fatores envolvidos na possessão diabólica: a atuação extrema do diabo sobre um corpo humano e o exercício do poder diabólico. No que diz respeito à presença do diabo, uma vez que o diabo é um ser espiritual e imaterial, ele está no lugar onde age (presença operativa); ele não é limitado pelo espaço, tempo ou lugar (cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologiae. l, 8, 2, ad 1). Portanto, um corpo humano poderia sofrer a ação de vários demônios, ou um demônio poderia afetar vários corpos humanos um a cada vez.

Com relação ao exercício do poder diabólico, o demônio pode exerce-lo sobre uma pessoa na medida da permissão divina, já que sendo criatura está sujeito ao Criador. Em casos de possessão autêntica (casos raros reconhecidos pela Igreja) não está sempre e continuamente ativo. Há períodos de calma e quietude que são alternados por períodos de crise, sendo que estes ocorrem geralmente quando há contato com algo sagrado. É claro, como ser espiritual o diabo poderia estar continuamente ativo na vítima, e talvez o preferisse; mas a vítima não seria capaz de suportá-lo, nem Deus o permitiria. Mas a pergunta é feita: existem casos autênticos de possessão diabólica e, assim sendo, por que Deus os permite?

  1. d) Possibilidade de Possessão Diabólica

Se se admite a existência do diabo como um ser espiritual, deve-se também admitir a possibilidade de possessão diabólica. Não há nada para impedir o diabo de atuar sobre um corpo humano e assim usá-lo como instrumento de seus propósitos. Nada a não ser Deus em seus impenetráveis desígnios, pode permitir (ou não) que o diabo atue assim sobre uma pessoa como se tomasse sua posse (daí o nome possessão). E não há nada que uma pessoa possa fazer para impedir que seja atacada pelo diabo se Deus o permitir que aconteça. É claro, a possessão diabólica não é em nenhum sentido um mal moral ou uma questão de pecado da parte daquele que é possuído.

  1. e) Tentativa de uma explicação psicológica

Tentaremos uma explicação sobre o mecanismo psicológico de uma possessão. Como é possível que uma criatura espiritual possa “apossar-se” tão profundamente do psiquismo de outra pessoa a ponto de escravizá-la por dentro?

A psicanálise e a psicologia moderna nos mostram como nossa liberdade pode ser condicionada por centenas de fatores dos quais nem sequer tomamos conhecimento. A técnica moderna de propaganda, os “comerciais” nos mostram até que ponto o homem pode ser condicionado. Mas sobretudo as técnicas sofisticadas de torturas mentais, as “lavagens cerebrais” mostram como uma personalidade pode ser reduzida a trapo, como uma consciência pode ser totalmente manipulada. A “civilização” moderna descobriu o modo de escravizar o homem por dentro, de fanatizá-lo, de torná-lo “possesso” de uma ideologia ou de um sistema. Assistimos horrorizados o espetáculo dos homens bombas, frutos de um fundamentalismo religioso fanático que produz mortes e violência. De um certo modo são possessos!

Este exemplo ao mesmo tempo que esclarece de algum modo o processo psicológico da “possessão”, suscita um verdadeiro problema a alguns teólogos; eles acham que uma vez que a ciência moderna descobriu a técnica satânica de fazer “possessos”, parece que o velho mestre poderia ser aposentado! A verdade, porém é que a técnica satânica também parece ter evoluído bastante.

Um princípio fundamental da teologia é que “a graça supõe a natureza”.  A encarnação da graça se verifica dentro do contexto cultural concreto. A história sagrada nos evidencia como cada época tem seu estilo típico de santidade. O mesmo se deve dizer sobre as possessões diabólicas.

A atividade do espírito maligno adapta-se ao espírito da época. Na Idade Média a caça às bruxas tomou-se uma histeria coletiva. As superstições pagãs e as práticas mágicas trazidas em massa pelos bárbaros convertidos (sobretudo germanos, francos e celtas) fundindo-se com a religiosidade popular pouco esclarecida deram origem a um sincretismo religioso muito vulnerável à magia. Nesse contexto cultural saturado de religiosidade supersticiosa não é inverossímil que Satanás tenha provocado casos de possessão que hoje pareceriam burlescos. Bastaria, porém uns poucos casos autênticos de possessão para provocar uma reação em cadeia, prolongada indefinidamente pela auto-sugestão ou sugestão coletiva.

A parapsicologia hoje demonstra que os homens possuem (uns mais, outros menos) forças ocultas (telepatia, telestesia, telequinese etc.). Um clima de exaltação supersticiosa de fanatismo religioso pode provocar verdadeiras hipertrofias e explosões desses dotes paranormais. O demônio certamente sabe tirar partido do “espírito da época”.

Os enganos lamentáveis cometidos no passado exigem de nós muita cautela nesta matéria.

Hoje o clima cultural é bem diverso. Vangloriamo-nos de viver na cidade (tecnópolis) construída pelo nosso próprio engenho no seio de uma sociedade secularizada. Mas a característica dominante da megalópolis humana é a sua unidimensionalidade[4] e massificação.

O cidadão da megalópolis é manipulado, no recôndito mais íntimo de sua consciência, pela tecnologia audiovisual, pelos meios técnicos de comunicação de massas, pela propaganda e pelos fenômenos de sugestão global. Nunca corno em nossos dias o homem foi tão manipulado, massificado, despersonalizado.

Ora, quanto mais despersonalizado é o homem, tanto mais acessível ele é à sedução demoníaca. Pois ela nivela o valor da personalidade individual, impede decisões pessoais e tende a suprimir a autoconsciência e responsabilidade individual. O endeusamento de ídolos fabricados para sociedade de consumo, a exploração desenfreada das paixões nos “comerciais”, o apelo constante aos instintos, a redução da lógica, engendram uma excitação da massa muito vulnerável ao perigo de tornar-se o joguete da paixão do poder egoísta e arbitrário e de qualquer tipo de demonismo.

É neste sentido que os teólogos modernos falam de uma possessão coletiva ou de uma Demonização da História.

Uma demonização da história verifica-se quando, pela divinização do Estado ou do Poder centralizado quer numa pessoa quer numa coletividade, se desvaloriza a personalidade humana pelo terror ou medo, mediante propaganda ou sugestão e ela é arrastada para o mal como parcela de uma massa amorfa. As técnicas diabólicas de possessão tornaram-se muito mais sofisticadas. Uma visita aos crematórios de Dachau (campo de concentração nazista na Segunda Guerra) nos convence de um modo brutal que somente uma possessão coletiva poderia provocar o genocídio de uma raça. A visão das massas famintas na África, crianças disformes pela fome, nos mostra o quanto o desejo de poder e de riquezas podem possuir o homem.

O Apocalipse descreve, com extraordinário realismo que a história pode tornar-se tão demonizada que o império político chega a identificar-se com a Besta satânica em luta mortal com os discípulos de Cristo. Cumpre não esquecer que a atividade do demônio faz parte da história até a parusia.

“Parece que o Diabo adota atualmente formas muito discretas de possessionar-se de um homem… Em todos os crimes políticos de alcance mundial deve-se contar com uma possessão na medida em que seu autor as comete como que impelido, possuído e enredado pela lógica indisciplinada de uma ideologia autoconfeccionada, pelo ódio frio, por um desprezo sem escrúpulos dos homens. Todos aqueles que planificam sem descanso mortes e destruições, todos aqueles que realizam uma atividade sem trégua, cujo nimbo está formado pela cadeia anônima de crimes que eles desencadeiam, todos aqueles que não têm raízes em nenhuma família e em nenhuma comunidade de amigos, em sua desvinculação e conseqüente descontrole, são dignos de temor, com grande probabilidade são possessos de Satanás”.(A. Winkelhofer, Frankfurt)

[1] espíritos indivisíveis ou no sistema de Leibniz: substância simples, ativa e indivisível da qual todos os entes são formados

[2] Antropomorfismo: (1) tendência de atribuir a Deus sentimentos, paixões e atos humanos. (2) Doutrina que concebe a divindade à imagem do homem.

[3] Imanente: aquilo que existe sempre num ser e não pode ser separado dele, sendo circunscrito a ele e não se comunica a outro ser externo a ele.

[4] Unidimensional: que tem uma só dimensão


 

Autor: Ministério de Formação Paulo Apóstolo

Comunidade Javé Nissi

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