O Batismo no Espírito Santo como Evento Histórico

O Batismo no Espírito Santo como Evento Histórico

O início do cristianismo tem, indubitavelmente, um conteúdo pentecostal e carismático. Esse aspecto da vivência dos primeiros cristãos antecede a formatação da estrutura hierárquica da Igreja e era um dos seus elementos constitutivos.

O processo de institucionalização porquê começou a passar as comunidades cristãs a partir, sobretudo, do século IV, promoveu certa separação entre a dimensão carismática pentecostal e a constituição da Igreja. Os bens religiosos foram como que condensados nos sacramentos, o que representa uma espécie de institucionalização da graça.

Conforme demonstraram McDonnell e Montague, na prática cristã primitiva não havia diferença substancial entre a iniciação cristã e o batismo no Espírito.[1] Existia também uma expectativa pela manifestação carismática imediatamente após a ministração dos sacramentos da iniciação.[2] Entre esses sinais visíveis, as línguas e as profecias ocupavam lugar privilegiado e eram bastante comuns: “Na Igreja primitiva havia uma expectativa generalizada, senão universal, de que o batizado manifestasse a recepção do Espírito de maneira carismática”.[3]

Esse panorama é confirmado por Tertuliano[4] que, no fim do seu tratado sobre o batismo, exorta os adultos neófitos: “Assim, vós os abençoados, por quem a graça de Deus espera, quando sairdes do sacratíssimo banho do novo nascimento (…), pedi ao vosso Senhor, pelo dom especial de sua herança, os carismas, que são uma nota adicional (do batismo)”.[5] Para Tertuliano, a ocasião para se fazer esse pedido era após o banho e a unção, quando os neófitos encontravam-se no recinto eucarístico.

Orígenes também cita o Batismo como princípio e fonte dos carismas, coisa que nem os seus mais cruéis oponentes criticaram. Hilário de Poitiers também reconheceu que os carismas eram dados em abundância em relação à iniciação. Este, em Sobre a Santíssima Trindade, faz no total 19 referências a 1Coríntios 12, o que demonstra que os carismas não era um assunto de pouca importância.[6]

Por que essa ligação não foi mantida? Por que a administração sacramental evoluiu de modo a promover uma separação entre a iniciação cristã e o batismo no Espírito de forma visível, ou seja, a manifestação dos carismas? Não seria de esperar que, seguindo a tradição, os sacramentos continuassem portando seu conteúdo original?

McDonnell e Montague afirmam que o desaparecimento dos carismas proféticos dos ritos da iniciação cristã parece estar ligado à ascensão do montanismo.[7] Os montanistas davam muita atenção aos carismas e constituiram-se numa ameaça suficiente para justificar a convocação do primeiro concílio após o de Jerusalém. Depois que Tertuliano tornou-se montanista, o seu tratado Sobre o Batismo foi examinado, procurando as relações existentes entre ele e o movimento herético.

Mesmo que alguns antimontanistas reconhecessem que os carismas proféticos deveriam permanecer na Igreja, tornou-se muito difícil continuar orando por eles dentro da iniciação após a condenação de um movimento onde os carismas tinham um grande papel: “Como os carismas eram identificados com o montanismo, os próprios carismas, por contágio, tornaram-se suspeitos”.[8]

A perspectiva teológica que associava os carismas proféticos à iniciação cristã foi sendo gradativamente abandonada. Tanto em Basílio como em Gregório de Nazianzo[9] ainda se encontra a tentativa de manter os carismas no contexto da iniciação, mas eles não promovem mais os carismas proféticos.

Outro fator que contribuiu para esse afastamento, foi a mudança do paradigma da iniciação cristã. Em certo tempo, o modelo deixou de ser o batismo de Jesus e passou a ser sua morte e ressurreição. Inicialmente, o batismo cristão tinha como única credencial o batismo de Jesus no Jordão, ocasião em que ele foi ungido para realizar a salvação e preenchido com o poder carismático de curar e libertar dos espíritos malignos: “Tudo o que estava contido na unção de Jesus pelo Espírito no rio Jordão, é adquirido pela Igreja na celebração do batismo”.[10]

O que mudou foi a compreensão do batismo cristão como ícone do Batismo de Jesus, por causa da facilidade com que submergir-se na água foi identificada com entrar na morte de Cristo. Gradualmente, o Batismo como imagem da morte e ressurreição de Jesus veio a dominar.

Não se pode deduzir que esta mudança tenha sido motivada pelo desejo de diminuir o papel do Espírito e ressaltar o de Cristo. Nem que esse novo paradigma se oponha diretamente ao primeiro. Mas “como o protótipo foi mudado, o papel do Espírito no batismo ficou diminuído. Se é verdade que a realidade central do batismo é a recepção do Espírito, isso fica mais apropriadamente simbolizado no batismo de Jesus do que em sua morte e ressurreição”.[11]

Essa mudança paradigmática pode ter sido também promovida pelas restrições que a Igreja já fazia a outra heresia, o adocianismo, que usou o episódio do Batismo de Jesus para ensinar que Ele nasceu humano, tornando-se posteriormente divino por ocasião do seu batismo, ponto em que foi adotado como filho de Deus. Além disso, a prática crescente do batismo de crianças conspirou para tirar a atenção do Jordão e concentrá-la na morte e ressurreição de Jesus.

O fato é que a perda do batismo de Jesus como paradigma importante tornou mais difícil reconhecer o batismo no Espírito e os carismas como parte da iniciação cristã, uma vez que os elementos característicos do episódio do Jordão aproximam-se mais de um contexto de manifestações visíveis.

No tempo de São João Crisóstomo,[12] os carismas já haviam praticamente cessado e estavam completamente dissociados da iniciação cristã, embora fosse algo inerente à vida eclesial dos dias apostólicos. Crisóstomo sabia que a ausência dos carismas proféticos podia ser interpretada como se a Igreja houvesse se libertado dos imperativos dos tempos apostólicos. Por isso, ele fez vários ajustes. Primeiro, internalizou os carismas, declarando que a dimensão carismática realiza-se agora de modo invisível, como por exemplo no perdão dos pecados. Depois, Crisóstomo os espiritualizou, afirmando que os carismas continuam na Igreja de modo diferente: “Se você como cristão deixa a crueldade e se volta para a caridade com os outros, você curou a mão seca, que é um exercício do carisma da cura. Se você mantém seus olhos afastados da prostituta, você abriu os olhos do cego. Se você se dirige, não aos teatros, mas ao templo, você curou o coxo”.[13] O dom de línguas com gemidos inexprimíveis é o que o diácono faz na liturgia quando intercede pelo povo. E assim por diante. Para o Patriarca, nos tempos apostólicos, os carismas se dirigiam aos não crentes, como demonstrações do poder do Evangelho. Os crentes não precisam deles. Os carismas devem ser estimados, mas pertencem a uma segunda ordem da realidade religiosa.

Com algumas variações, Teodoro de Mopsuéstia[14] seguiu a mesma linha de raciocínio de Crisóstomo, argumentando que as profecias e as línguas são supérfluas “agora que a fé já está disseminada por todos os cantos da terra”. Teodoro foi mais longe, fugindo da necessidade de construir uma justificativa elaborada e limitando os carismas à era apostólica.

De maneira geral, Crisóstomo e Teodoro, assim como outros autores, acabaram por aceitar facilmente o contexto da Igreja de sua época, onde os carismas proféticos iam perdendo seu lugar. O prestígio e a influência desses homens contribuíram para que esse entendimento se expandisse por toda a Igreja.

Filoxeno de Mabbug[15] introduziu outra concepção a respeito dos carismas, que se tornou bastante trivial no catolicismo. Para ele, o poder carismático era privilégio dos ascetas, adquirido através de uma vida regrada junto a um completo desapego do mundo: “Agora, novamente, o Espírito Santo é dado (…) àqueles que são batizados (…). Entretanto, em nenhum deles, o Espírito manifesta visivelmente a sua obra. (…) A menos que se renuncie ao mundo para entrar no caminho das regras da vida espiritual (…) é que a obra do Espírito recebido no batismo se revelará”.[16] Esta é uma visão monasticizada dos carismas, que os reduziu a privilégio de um grupo dentro da Igreja, excluindo de sua posse os cristãos que não abandonam o mundo. Severo de Antioquia[17] também afirmou que os carismas não são concedidos a todos os crentes, mas devem ser encontrados entre “as pessoas espirituais”. Ainda hoje a cultura cristã ocidental tende a associar carismas como cura e milagres à santidade pessoal de alguns.

Essa padronização dos carismas fazia parte de um processo mais amplo, em que a Igreja se institucionalizava e o clero se constituía como casta primária. Os sintomas disso já se apresentavam nas chamadas Constituições Apostólicas, um importante documento redigido por volta do ano 380, por um compilador anônimo e sua equipe especializada em ciências teológicas. Ele transformou uma variedade de documentos num todo criativo. Nas Constituições Apostólicas, os profetas cedem lugar aos sacerdotes, que incorporam o ministério profético. A profecia recebe pouca atenção e como modelos de vocação profética, o autor propõe mulheres (Maria, Isabel, Ana), o que pode ser uma expressão de controle. O poder é centralizado nas mãos dos bispos e do clero e a ordenação recebe precedência: “Esse processo termina com carismas neutralizados, ou seja, carismas sem seu caráter distintivo, tendo pouca especificidade”.[18]

O cristianismo entrou numa fase de rotinização que seria cada vez mais acentuada e se estenderia pelos séculos seguintes, reforçada por um pensamento teológico que retraia novos e possíveis surtos carismáticos. Durante toda a Idade Média, um alto grau de institucionalização promoveu uma espécie de centralização da graça. Na Modernidade, o catolicismo ocidental se deixou caracterizar pela primazia da racionalidade, tornando o ambiente eclesial completamente inóspito aos carismas proféticos, já que estes são predominantemente intuitivos.

Qual a conseqüência disso para a iniciação cristã? No sentido teológico, ela permanece sendo um “batismo no Espírito”, mas já não se espera sua manifestação visível. A incidência do Espírito Santo está mais no nível ontológico. Para suprir essa carência de visibilidade, otimizaram-se os símbolos. Estes são os elementos que sinalizam concretamente uma ação imperceptível a priori. Nesse sentido, a simbologia sacramental substituiu os carismas.

Mas não foi apenas o aspecto fenomenológico que ficou comprometido. Ministrada predominantemente em crianças, a iniciação precisa ser completada mediante a educação cristã. Numa posterior fase de perda da eficácia da família nesse aspecto, a vida na graça dos batizados sacramentalmente também foi afetada.

Note-se que é nesse contexto – e não noutro – que surge aquilo que se chama atualmente de “batismo no Espírito Santo”. Trata-se de uma ocasião em que a ação pneumática é experimentada e que, na maioria das vezes, é um fato fundante, um novo ponto de partida para a vida cristã. Portanto, além de ser uma graça, o batismo no Espírito também tem um significado histórico, ou seja, ele diz respeito não só à incidência do Espírito na vida de alguém mas também ao momento específico em que isso acontece. No sentido histórico, o batismo no Espírito nada tem a ver com o sacramento do Batismo e apareceu num contexto de rotinização deste.

A experiência do batismo no Espírito contém alguns aspectos importantes para os quais se deve chamar a atenção. Primeiro, em relação à sua forma. Em geral, ele acontece por meio da oração espontânea (não litúrgica nem formal), em sua maioria de um ministro leigo (homem ou mulher), acompanhada pelo gesto de impor as mãos na cabeça ou no ombro da pessoa. A despeito das críticas que se faz à imposição das mãos, ela expressa proximidade fraterna e encorajamento: “A imposição das mãos não é rito sacramental, embora esse gesto esteja muitas vezes presente na celebração dos sacramentos. É, antes, gesto cotidiano que a tradição judeu-cristã sempre conheceu e praticou”.[19]

Em segundo lugar, chamam a atenção os efeitos do batismo no Espírito. O sujeito percebe incontestavelmente a proximidade de Deus, sente-se amado por essa presença avassaladora e, geralmente, responde a esse amor na forma de conversão. As mudanças, às vezes súbita, às vezes gradativa, manifestam a ação do Espírito Santo no aspecto existencial. Por outro lado, os carismas (principalmente o dom de línguas) e as lágrimas que frequentemente acompanham esse momento, constituem-se no sinal imediato dessa ação.

Não deixa de ser interessante o fato de que, do ponto de vista prático, o batismo no Espírito revelou-se em certo momento mais eficiente do que os sacramentos, vindo a ser um importante elemento tanto para o reavivamento da fé de cristãos tradicionais como para promover a conversão ou reinserção de católicos afastados.[20] Esse fato, aliado ao fato de que o batismo no Espírito é de fácil manipulação e não se vincula ao ministério hierárquico, ajuda a compreender as restrições que a ele se fez no contexto do surgimento da Renovação Carismática Católica.

A meu ver, portanto, o batismo no Espírito é antes de qualquer coisa uma resposta histórica, providencial, contra os efeitos de uma rotinização da experiência religiosa cristã que já se estendia por vários séculos. Note-se que ele resgata os elementos primários da iniciação cristã, a saber: a vida da graça e os carismas. Para mim, fica evidente que, hodiernamente, o surgimento de uma prática de oração que pleiteia o derramamento do Espírito de forma experiencial e carismaticamente manifestada, como experiência fundante, só se justifica por que os sacramentos da iniciação perderam essa funcionalidade.

Não é difícil compreender porque essa graça de reavivamento “corre por fora” do contexto hierárquico-sacramental. Historicamente, a hierarquia tem dificuldades de absorver manifestações carismáticas. Ela tende à burocratização. Além disso, as exigências sociais de um catolicismo em crise tornavam urgente a comunicação dessa experiência. Preso ao ministério ordenado, jamais o batismo no Espírito se espalharia do modo como se espalhou e, certamente, não realizaria o seu propósito em curto espaço de tempo.

[1] Para compreensão dessa relação entre batismo no Espírito e iniciação cristã utilizo amplamente o excelente estudo de Kilian McDONNELL e George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo (1995).

[2] Apesar das variações existentes, é possível caracterizar a iniciação cristã na antiguidade como sendo ministrada de uma só vez (batismo, crisma e eucaristia), sendo que o derramamento do Espírito se identificaria com o gesto da imersão na água ou, mais ainda, com a imposição das mãos. Considerando a prática da Igreja primitiva, a maneira como se administra os sacramentos da iniciação hoje em dia – separadamente e com ordem invertida em dois deles: batismo, primeira eucaristia, crisma – é, no mínimo, entranha.

[3] Killian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 77.

[4] Tertuliano viveu no Norte da África entre os anos 160 e 225. Discute-se se ele foi ou não sacerdote. Seu tratado sobre o batismo é a obra mais antiga a respeito do tema e a única do período pré-niceno sobre qualquer sacramento.

[5] Apud Killian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 108.

[6] Cf. Ibid., p. 145-154.177-178. Orígenes viveu entre 185 e 254. Prolixo escritor, foi condenado pelo sínodo romano, segundo Jerônimo “não por motivo das inovações no dogma, nem por acusá-lo de heresia, (…) mas porque eles não suportavam o esplêndido efeito de sua eloqüência e erudição: quando ele falava, todos emudeciam”. Hilário foi bispo e Doutor da Igreja, falecido em 367.

[7] O montanismo foi um movimento que começou na Frigia, provavelmente por volta do ano 157, não inerentemente herético, mas que foi apontado como tal posteriormente. Fundado por Montano, esse movimento enfatizava as manifestações do Espírito, reivindicando para si certas propriedades espirituais vinculadas aos carismas. Tertuliano foi, sem dúvida, seu adepto mais famoso.

[8] Killian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 131.

[9] Basílio nasceu em Cesaréia e viveu entre os anos de 329 e 379, contemporâneo de Gregório de Nazianzo. Juntamente com Gregório de Nissa eles compõem os assim chamados “Padres Capadócios”.

[10] Killian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 20.

[11] Ibid., p. 277-278.

[12] Viveu entre 347 e 407. Teólogo e escritor, foi Patriarca de Constantinopla no fim do século IV e início do V.

[13] Ibid., p. 292.

[14] Padre pós-niceno, contemporâneo de Crisóstomo.

[15] Viveu entre 440 e 523. Ainda jovem, entrou no movimento monástico, tornando-se eremita; em 485 tornou-se bispo de Mabbug.

[16] Filoxeno de MABBUG apud Killian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 325.

[17] Viveu entre 405 e 538. Nascido na Pisídia, tornou-se monge ainda jovem e, mais tarde, Patriarca de Antioquia.

[18] Killian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 257.

[19] Paul Josef CORDES, Reflexões sobre a Renovação Carismática Católica, p. 25.

[20] Se a eficiência do batismo no Espírito tem a ver com a graça sacramental discutirei mais adiante; aqui, importa saber que, como dito, ele é um outro momento histórico e, nesse aspecto, pode ser visto como realidade autônoma.


 

Autor:  Ronaldo José de Sousa – Comunidade Remidos no Senhor

Comunidade Javé Nissi

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