O Mistério de Pentecostes

O Mistério de Pentecostes

Uma leitura de Atos 1,8 – Poder de Testemunhar

A celebração[1] de Pentecostes marcou ontologicamente[2] os discípulos de Jesus tornando-lhes verdadeiramente criaturas novas (II Cor 5,17).

É possível analisar essa mudança considerando dois termos[3] que Lucas pontuou em sua narrativa, cujo intento é apresentar a maneira como Deus preparou o coração dos discípulos para a grande celebração de suas vidas e que lhes introduziria na vida (Jo 10,10b), concedendo-lhes poder para testemunhar!

Não nós é realmente compreensível o mistério de Pentecostes se não considerarmos o fato de que o mesmo Espírito que agiu com e através de Jesus, também nós é dado para sermos novos cristos. A teologia paulina se esboçou graciosamente na analogia do corpo, Paulo vê a dinamicidade da comunidade como uma interação de todos os membros cuja cabeça é Cristo.

Este corpo é a comunidade cristã, somos cada um de nós, que ungidos pelo espirito recebemos o poder para testemunhar a presença real de Cristo. Sobre o mistério da Redenção se debruça o mistério de Pentecostes, e sob esta perspectiva perfilamos nossa reflexão.

1- Recebereis o poder do Espírito Santo:
O termo grego aqui apresentado é “δυναμιν” – “dinamis”, palavra esta, que é raiz do substantivo dinamite. Isto mesmo trata-se de uma explosão, uma explosão de amor que transformou a vida dos discípulos.

Não nos referimos a uma simples experiência de amor. Infelizmente a compreensão de amor em nossos dias é debilitada e, por vezes banalizada. Só poderemos entender a dinamicidade desse amor se mergulharmos no grande mistério da redenção a nós concedido por Cristo Jesus nosso Senhor.

Façamos uma breve consideração dos pontos basilares desse mistério: encarnação – morte e ressurreição.

a) Encarnação:

É fenomenal tentarmos racionalizar esse mistério, e isso é possível! Pois nosso Deus se revela, se da a conhecer! Imaginem! Deus perfeito, fonte da vida, Senhor de todas as coisas, onisciente, onipotente, onipresente[4] , eterno, realizado em si mesmo.

Na abundância de seu amor, despoja-se de seus atributos, não de sua essência, e de criador se faz criatura. Repito: é fenomenal! Foge aos parâmetros de tudo que humanamente concebemos.

Duns Escoto (1226-1308), beatificado por São João Paulo II em 1993, mergulhou tão plenamente no oásis desse mistério que afirmou peremptoriamente: “mesmo que o homem não tivesse pecado Jesus iria se encarnar[5] ”. A compreensão aqui é bem simples: o amor está na procedência de todos os atos de Deus! O contrário disso seria o mesmo que afirmar que é o pecado que move o amor de Deus.
Cantasse numa bela canção: “A essência de Deus amor”, isto é, todo ato de Deus é um ato de amor. Sua motivação é o amor e não o pecado! “A essência de Deus é amor!”.
Estava no coração de Deus desde toda eternidade fecundar-nos em seu amor, tornar-nos seus filhos (Rm 8,15).

b) Morte:

Se a encarnação nos encanta, a morte nos assusta. Embora a própria natureza já nos revele que a morte é parte integrante de nosso existir[6] , temos dificuldade em compreender e assimilar esse processo. É na paixão, na páscoa de Cristo que esse mistério se desvela em nossa vida e, mais uma vez somos batizados nesse amor.

Utilizaremos dois termos que são chave do livro do Pe. Vásquez[7] , a saber, mistagogia e teografia. Trata-se de termos que estão na base da direção espiritual, cuja finalidade é chegarmos a estatura de Cristo (Ef 4,13).
Mistagogia (mist – mistério / agogia – introdução) visa inserir-nos no mistério e a teografia (teos – Deus / grafia – escrita) é a compreensão, os direcionamentos para a a caminhada e o crescimento, em outras palavras é a inteligibilidade deste mistério.

Só compreendemos nossa história na história de Cristo, só assimilamos e amadurecemos nosso sofrimento no sofrimento de Cristo. A Gaudium et Spes documento do Concílio Vaticano II defini muito bem esta acepção:
Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efetivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime (Gs 22).

Assim, percebemos que morremos um pouco a cada dia, mas se essa morte está inserida na paixão de Cristo, ela é páscoa, passagem para a vida plena e sem as limitações do tempo presente (Ap 21,4).
Passamos por grandes provações, renúncias, incompreensões que aparentemente são sinais de morte, no entanto, em seu bojo trazem nossa vida que está escondida em Cristo (Cl 3,1-4).
A morte em Cristo é vida; e a vida sem Cristo é morte!

c) Ressurreição:

Na ressurreição coroa-se o grande projeto que Deus preparou para nós. Aqui ele nos insere definitivamente na vida divina. É uma decisão irrevogável de Deus, Ele quer nos inserir na vida (Jo 10,10b).
Tudo que era necessário ele o fez em favor de nós e, espera ansiosamente nossa resposta. Ao contrário do nosso, o amor de Deus é estável, não desiste de nós e é a fonte da vida!
Na ressurreição o filho é glorificado (Jo 7,37-39) e o Espírito é derramado abundantemente (Atos 2,32-33), a falta de esperança é dissipada (Rm 5,5) e torna-nos invencíveis (Rm 8,31.37).

2- Sereis minhas testemunhas:

Feitas as devidas considerações acima propostas, faz se perceptível em que sentido se manifesta autenticamente o poder de Deus e em que circunstâncias seremos testemunhas.
Referimo-nos ao “μαρτυρες” – martírio, que é mais do que falar em favor, é testemunhar com a nossa vida é morrer pela causa. Aqui morrer também pode ser aplicado como viver pela causa, enquanto sentido da vida!

Como acima analisamos tal testemunho só é possível se estivermos verdadeiramente inseridos no mistério redentor de Cristo nosso salvador. Mas do que pregarmos dizendo que Jesus é nosso Senhor, a experiência de Pentecostes nos leva a vivenciar este senhorio em gestos concretos de entrega, doação, aprendizado e conversão.

O livro dos Atos dos Apóstolos trazem o testemunho da comunidade cristã, da Igreja primitiva e, no correr de sua narrativa Lucas vai discorrendo sobre a maneira como o Espírito conduziu o Povo de Deus a responderem sua vocação, seja ela leiga ou clerical, mas em ambas as dimensões o Santo Espírito municiou os cristãos com os mais diversos carismas e produziu neles os mais perspicazes de seus frutos (Gl 5,22), que se traduzem em uma palavra, ou ainda, na essência de Deus: AMOR!

3- A guisa de conclusão:

A presente reflexão procurou introduzirmos no grande mistério de Pentecostes, considerado na perspectiva de “poder e testemunho”, cuja sua expressão vai muito além de sua carismaticidade, a saber, dons de cura, glossolalia, profecia etc.

O mistério de Pentecostes engloba a vida em sua dinamicidade e longevidade, que a luz dos princípios cristãos adentram no mais profundo do ser humano, fazendo-os participes da natureza divina (II Pd 1,4). Somente sob o influxo do Santo Espírito podemos ser verdadeiramente sal da terra e luz do mundo como nos exortou o próprio Cristo no sermão da montanha.

É mistério que tocamos as apalpadelas, e do qual se-nos-é impossível açambarcar, em outras palavras, ele não cabe por completo em nossa inteligência, mas pode ser vivenciado plenamente me nosso coração!

Autor: Carlinhos Faria – Teólogo – Membro da Comunidade Javé Nissi


[1]Cabe aqui tanto o verbo celebrar quanto experienciar, tendo em vista que se propõe algo do qual se sente, se vive, que gera vida e que transforma. Para ilustrar: “Não assistimos missa, como se dizia antigamente! Celebramos a missa, e em tal feita, o padre preside todos nós celebramos”. Cristo foi o presidente que derramou o Santo Espírito sobre o povo reunido que ali celebrou (festejou, vivenciou)!

[2]A palavra é formada através dos termos gregos “ontos” (ser) e “logos” (estudo, discurso). Aqui visa definir uma experiência que foi determinante na vida dos discípulos, uma vez que lhes marcou tão profundamente a ponto de ressignificar suas vidas, isto é, conferiu-lhes sentido à sua existência. Ex: O mesmo Pedro que por medo nega Cristo três vezes, é também quem eu seu martírio (reza a tradição) pede ousadamente que seja crucificado de cabeça para baixo, considerando-se indigno de morrer como seu mestre.

[3]Recebereis o poder do Espírito Santo / Sereis minhas testemunhas.

[4] Referimo-nos aqui aos chamados atributos de Deus: Onisciente: sabe tudo; Onipotente: pode tudo; Onipresente: está em todo lugar.

[5]Fonte:http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100707_po.html. Acesso: 17/09/2013.

[6] Também participamos do ciclo natural de toda a obra criada: Nascemos, crescemos, reproduzimos (alguns) e morremos. No que tange a morte cristã, vale muito conferir o auspicioso artigo da Phd Lina Boff. Cf: http://atualizacaoteologica.blogspot.com.br/2011/02/morte-crista.html.

[7] Vásquez, Ulpiano Moro. A orientação espiritual: mistagogia e teografia. São Paulo: Loyola, 2001.

 

 

Comunidade Javé Nissi

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