A Teologia do Espírito Santo: novas perspectivas

A Teologia do Espírito Santo: novas perspectivas
Francisco Catão (1927)

Doutor em Teologia pela Universidade de Estrasburgo (França)

Professor no Instituto Pio XI, na Faculdade São Bento de Teologia e na Faculdade Assunção.

O Espírito Santo está na ordem do dia. Não apenas nas igrejas cristãs que nesses últimos cem anos, passam por transformações profundas atribuídas ao Espírito, mas em todo o universo, com o interesse crescente pelas mais diversas espiritualidades e com a consciência não menos intensa da necessidade que temos de nos reconciliarmos uns com os outros e com o planeta, sob pena de nos autodestruirmos como humanidade.

Os desafios antropológicos e ecológicos são de tal ordem que os cristãos só estarão preparados para os enfrentar se tiverem a capacidade de articular com o reconhecimento de Deus e a fidelidade ao Senhor Jesus, uma compreensão espiritual da mudança de época que estamos vivendo. Deus não poderá ter lugar em nosso mundo se não for reconhecido como Espírito, da mesma forma que Jesus só estará presente na vida das pessoas e comunidades humanas por seu Espírito, tão radical é a crítica que sofrem hoje todas as instituições e práticas estereotipadas, a começar pelas religiosas.

  1. Novas perspectivas

Que se entende por novas perspectivas em Teologia? Depende, evidentemente, do que se entende por Teologia.

Na perspectiva antropocêntrica da modernidade, a novidade na história é introduzida pelos homens e mulheres que estiveram na origem dos diversos movimentos culturais e sociais. Os novos modos de viver e de pensar brotariam da genialidade de indivíduos que sabem tirar proveito da convergência de uma série de fatores de toda ordem, para criar alguma coisa de novo na ordem social, institucional ou do saber, como Lutero, Descartes e Rousseau, apontados como os três grandes reformadores, sem esquecer Napoleão e Abraão Lincoln, na esfera política, Albert Einstein, na física, Agostinho, Tomás de Aquino, Karl Barth, Karl Rahner e Yves Congar, no âmbito da teologia. Sob esse aspecto a teologia seria um produto da arte humana. Falar-se-ia, com razão, de produzir teologia, como se diz hoje que as universidades devem produzir conhecimento. A expressão se tornou de tal maneira corrente que mal se percebe que retrata um parâmetro cultural antropocêntrico: mais vale o conhecimento produzido do que a realidade conhecida, inclusive quando se trata de Deus. Produzir teologia é dizer que Deus depende do ser humano e se reduz à nossa forma de encarar a realidade!

A história, porém, nos ensina, que não era assim que se pensava no primeiro milênio e, de certo modo, até o ápice da Idade Média, como não é assim que se pensa no Oriente Cristão, até os nossos dias. Entendia-se a Teologia não como um saber produzido, mas recebido. Aliás, o termo teologia designava um conhecimento experiencial de Deus, que atingira uma qualidade de excelência, uma verdadeira sabedoria. O humilde labor do que hoje denominamos, com uma certa desenvoltura, o teólogo era considerado um serviço prestado ao ensinamento divino, à sacra doctrina, como se dizia no século XIII. Ensinamento contido de maneira excelente nas Escrituras e no testemunho dos cristãos. Tal ensinamento, longe de ser estático, letra, como o pretenderam os fundamentalismos de todos os tempos, é chamado a ir se renovando com o tempo, ao sabor da própria evolução da humanidade e da história. Há um condicionamento histórico de toda teologia, que explica sua constante renovação, sem que se altere sua natureza de conhecimento recebido. Eis porque as novas perspectivas são ditadas pela história.

Sob esse aspecto, também à teologia se aplica o que o papa João XXIII dizia em seu famoso discurso, Gaudet Mater Ecclesiae, na abertura do Vaticano II, no dia 11 de outubro de 1962: a história é a mestra da vida e por isso, como cristãos, devemos estar atentos aos sinais do tempo.

O tempo em que vivemos

Sem entrar em maiores considerações sobre as características culturais do nosso tempo, marcado pelo fim da modernidade – o que ultrapassaria os limites de nossa exposição – basta observar que estamos assistindo, na pós-modernidade religiosa e teológica, a uma significativa tomada de consciência, prática e teórica, da ação do Espírito na humanidade em geral e, em particular, entre os cristãos.

Em continuidade com a Reforma e com o que se denomina em geral a Segunda Reforma, o pentecostalismo nascido há mais ou menos um século, constitui hoje um desafio para todas as igrejas e, especialmente, para a teologia.

Na própria Igreja Católica, os movimentos que se desenvolveram no século XIX, como o movimento litúrgico, a volta à Sagrada Escritura e a renovação dos estudos bíblicos no alvorecer do século XX, os movimentos comunitários vindos à luz sobretudo a partir da segunda guerra, que convergiram para a eclosão da renovação conciliar de há quarenta anos tiveram como conseqüência uma profunda modificação do modo de ser e de pensar da comunidade cristã em relação a si mesma e em face do mundo.

Houve, na realidade, uma mudança de foco. De a instituição eclesiástica, considerada o centro de gravidade da Igreja, a pedra angular colocada definitivamente pelo próprio Jesus – da interpretação institucional do Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam – passou-se a reconhecer o lugar central de a comunidade, o Povo de Deus, Corpo e Esposa de Cristo, Templo do Espírito Santo. A igreja histórica, comunidade que envolve a estrutura institucional, passou a ser um sinal, como que o sacramento, em que está, por disposição divina, presente a comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, comunhão que constitui a Igreja da Trindade, na famosa expressão de são Cipriano, que data do 3º século (cf. Lumen Gentium, n. 4).

Essa mudança de foco se interpreta teologicamente, como muitos autores já o observaram, como a superação de uma eclesiologia centrada unicamente em Cristo e nos seus poderes – sacerdote, profeta e rei – pode ser considerada como interpretação autêntica dos documentos conciliares. Trata-se de uma mudança do cristomonismo que então prevalecia, para uma forma a ser definida, de cristo-pneumatologismo, de uma igreja considerada unicamente como instituição constituída por Cristo e, posteriormente, santificada pelo Espírito, para uma Igreja comunidade histórica no Espírito, brotada do lado transpassado de Jesus, mas fundada no Espírito comunicado pelo Ressuscitado e que assume feição histórica em Pentecostes, de sorte que o Espírito, mais do que um dom feito à Igreja é um dom constitutivo da Igreja.

A Igreja Católica mudou. Havia herdado do passado, mais exatamente do início do segundo milênio, com a reforma gregoriana (Gregório VII, 1073-1085), a figura de uma instituição histórica centralizada em torno do sucessor de Pedro, revestido do caráter de pontífice supremo, dotado por Cristo de todos os poderes, representados pela tiara. Depois do Vaticano II, embora ainda persistam vivos muitos os traços do passado, aliás, recente, passou a se considerar, no alvorecer do terceiro milênio, sem negar seu passado, como sendo por natureza, antes de tudo, uma comunidade animada pelo Espírito, recebido de Jesus e que a constitui em vista de nos conduzir à comunhão com Deus, na vida eterna.

O referencial primeiro pelo qual a Igreja se vincula a Deus não são mais os poderes de Cristo, de profeta, sacerdote e rei, pretendidamente conferidos a seus representantes, mas o Amor, o Espírito Santo, nascido no coração do Pai e outorgado por Jesus, que se assentou à sua direita como homem, a todos os que o recebem como salvador e lhe reconhecem a autêntica autoridade espiritual. Somente nessa perspectiva eclesiológica, sem dúvida nova, se pode entender o alcance, por exemplo, das comunidades eclesiais de base, que alimentam um novo posicionamento político da Igreja, e a significação dos diversos movimentos eclesiais de matriz carismática, que se tornaram, aos olhos dos próprios sucessores de Pedro, portadores da esperança da renovação de toda a Igreja.

As mudanças na Igreja

Em 1950, uns dez anos antes do Vaticano II, o dominicano Yves Congar, que mantinha, em Paris, um relacionamento  denotado com o núncio na época, o Cardeal Ângelo Rocalli, que se tornará o papa João XXIII, publicou nas Éditions du Cerf, um livro de grande importância, sobre a teologia da mudança na Igreja:, Vraie et fausse reforme dans l’Église. O exemplar que foi oferecido ao núncio se encontra no legado do papa, abundantemente riscado, demonstrando a importância que suas idéias tiveram na decisão tomada pelo pontífice recém eleito, no dia 25 de janeiro de 1959, quando anunciou pela primeira vez e com surpresa geral dos cardeais e da cúria, sua idéia de convocar um Concílio Ecumênico para favorecer a renovação da Igreja e a união dos cristãos.

Não é o caso de analisarmos aqui o Vraie et fausse reforme. Observamos apenas que, na tessitura da obra já se nota claramente a mudança de foco da Igreja, que será sancionada no Vaticano II, e os germes de uma nova Teologia do Espírito Santo, que o próprio Congar explicitará mais tarde, tanto em sua obra Je crois en l’Esprit Saint, traduzida em três volumes por Paulinas, como no seu famoso discurso sobre a Atualidade da Pneumatologia, na abertura do 1º Congresso internacional de Pneumatologia, em Roma, março de 1982.

Limitar-nos-emos a sublinhar o que Congar entende como fundamento teológico da possibilidade de uma mudança na Igreja, teologia que embora parecesse entrar em choque como o imobilismo e a uniformidade diacrônica resultantes da interpretação de Trento, constituía, na verdade, o estabelecimento de uma base capaz de fundar a superação de todas as cisões históricas da Igreja, em particular as ocorridas nos séculos XI e XVI.

A tese da distinção entre a substância da fé e suas expressões, que vai ser lembrada no discurso de abertura de João XXIII e que presidiu a grande parte, senão à totalidade, dos documentos conciliares, em especial às constituições, funda-se, na verdade, no que Congar chama de historicidade da fé, ou seja, de que a fé está necessariamente, por razões antropológicas, inscrita numa expressão que, longe de a esgotar, apresenta-se como uma simples forma de dizer, de maneira limitada, a realidade transcendente. Tais formas devem ser consideradas com respeito e atenção, mas podem também, facilmente, levar a uma verdadeira traição da própria fé, quando consideradas em si mesmas como absolutas e definitivas. Não cremos no que dizemos, mas na realidade que exprimimos sempre de maneira limitada e imperfeita. A boca confessa o que está no coração, mas em palavras, incapazes de conter a verdade confessada, o próprio Deus.

Para nós, seres humanos, fé é um dom que, como todo dom, só é real quando recebido, integrado à nossa vida, e tornado ao mesmo tempo,, pela assimilação subjetiva da inteligência e da afetividade, nossa norma de agir e princípio animador da vida, em lugar da lei, segundo a melhor teologia paulina.

Ora, a teologia se faz em continuidade com a fé. É fruto de uma inteligência e de uma afetividade transformadas pela Palavra e pelo Espírito de Deus que, embora pelas vias humildes e laboriosas do raciocínio, procura chegar a poder dizer o ensinamento divino, na nossa linguagem humana, culturalmente inserida no tempo e no espaço. Longe de ser criação nossa, a teologia é interpretação, temerosa mas ousada, do ensinamento divino contido na fonte da revelação, que é o próprio Deus, e manifestado na experiência religiosa dos autores sagrados, em particular do próprio Jesus, e através da história, até os nossos dias, no testemunho da comunidade cristã, da Igreja.

Nossa questão, portanto, é de pressentir quais são as novas perspectivas se impõem à reflexão atual sobre o Espírito Santo, em virtude dos tempos presentes e da própria mudança na Igreja.

  1. As grandes idades da teologia do Espírito

Para entender a significação e o alcance da teologia do Espírito que somos hoje chamados a elaborar, como expressão atual do ensinamento divino, convém nos situarmos numa perspectiva histórica mais ampla, considerando, no caso particular da teologia do Espírito, os grandes dados já mencionados na reflexão sobre a mudança na teologia e na Igreja.

O Logos

A relação do Verbo com o Pai, que está no centro do Novo Testamento, é o fundamento de toda a reflexão cristã sobre a Trindade, e portanto, também sobre o Espírito. Embora a palavra Trindade seja de padrão helênico e date de Tertuliano (155-225), como grande parte do vocabulário teológico latino, não se observa, antes os fins do século IVº, uma formulação precisa, em termos helenistas, do ensinamento sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo contido no Novo Testamento.

Nessas circunstâncias, é compreensível que se tenha passado por uma série de hesitações quando se tratou de exprimir, em linguagem homogênea à cultura helenista, a relação do Verbo para com o Pai.

De um lado, mais marcados pelo emanatismo neo-platônico, alguns autores tendiam e ver no Logos encarnado uma modalidade de expressão do próprio Deus, diminuindo assim a distinção entre o Filho e o Pai, indiscutivelmente afirmada indireta e até diretamente no Novo Testamento. Outros autores, fiéis aos textos neotestamentários, numa postura mais próxima do realismo histórico, como Orígenes (185-254), por exemplo, subordinavam o Filho ao Pai, com o risco lhe negar a relação única de intimidade que manifestava com o Pai e o seu primado também único sobre toda a criação, que lhe reconheciam os textos sagrados.

A problemática se agravou a partir do fim do século IIIº e veio a eclodir, no início do século IVº, inclusive por causa da importância política do cristianismo, reconhecida por Constantino (306-337). Tornou-se urgente chegar a uma expressão satisfatória da fé que definisse o cristianismo em face do mundo helenístico.

Nessa altura, a perspicácia de Ário, propôs uma solução politicamente do maior interesse. Aproveitando-se do racionalismo estóico, que colocava todo o universo na dependência de um primeiro princípio constitutivo, o Logos, Ário faz ver que ao lado da Transcendência divina confessada pelas escrituras judaicas e cristãs, se devia admitir a existência de uma primeira criatura, o Logos, de que tudo dependia, como os próprios textos paulinos o ensinavam, mas que não era eterno nem transcendente como o Pai, a que constantemente se referia Jesus, o Logos encarnado, vindo como que de junto de Deus.

Seria interessante especular sobre o arianismo como matriz de todos os desvios doutrinários causados na história pela preocupação de ajustar o cristianismo às exigências políticas das diversas épocas, como tem acontecido na América Latina, mas isto nos levaria, mais uma vez, para longe de nossas considerações atuais.

O importante é observar a forma pela qual os cristãos, a duras penas, é verdade, reagiram, focalizando o núcleo do problema, a relação do Filho com o Pai, e recorrendo a um vocabulário homogêneo à cultura da época, que falava de upostasis, ousia ou fusis para designar o ser, passando a dizer que o Filho, ser como o Pai, gerado pelo Pai desde toda eternidade, era omoousios tw patri.

Apesar das dificuldades sobretudo políticas que colocava a expressão adotada em Nicéia (325), ela vai acabar se impondo graças à convicção generalizada desde as origens do cristianismo de que, pelo batismo, co-sepultados com Cristo, vivemos a vida do ressuscitado, que é a mesma vida divina. A defesa do omoousios era, assim, a salvaguarda da tradição neotestamentária fundada na significação da graça batismal.

O Pneuma

A definição do estatuto do Logos sancionada em Nicéia, além de uma série de outros problemas teológicos que não vem aqui o caso de analisar, levantava uma incerteza cruel no que toca ao Espírito Santo. O caráter ternário de um certo número de doxologias no Novo Testamento, em particular da final de Mateus, parecia colocar em pé de igualdade o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Como, porém, atribuir a consubstancialidade também ao Espírito sem relativizar a relação única do Filho com o Pai e, portanto, abrir as portas para um certo triteísmo larvar, na medida em que o Filho deixava de ser unigênito, para compartilhar com um terceiro a mesma substância do Pai?

Pode-se dizer, num certo sentido, que a teologia da Trindade se coloca quando se coloca a questão do Espírito. Como passar do binário para o ternário sem prejuízo da originalidade do binário e do caráter exclusivo de cada uma das relações que se afirmam no modelo ternário?

Atanásio (295-273) e Basílio (330-379), respectivamente nas suas obras as Cartas a Serapião e o Tratado do Espírito Santo defendem com afinco a originalidade da relação Pai-Filho, mas se referindo ao caráter divino da vida que nos é comunicada, salvaguardado precisamente pela afirmação da consubstancialidade do Filho, fazem ver que a vida divina tem como princípio intrínseco e quase-formal, o Espírito, amor que une o Pai e o Filho, e que nos é comunicado, fazendo brotar no cristão uma vida de filhos de Deus, pois é no Espírito que chamamos a Deus de Abba. Assim o Espírito se nos manifesta não diretamente como pessoa, mas como amor que une o Pai ao Filho e o Filho ao Pai, amor divino, portanto, merecedor da mesma honra e da mesma glória que atribuímos ao Pai e ao Filho.

Evita-se, assim, falar da consubstancialidade do Espírito. Chega-se, contudo, a um resultado satisfatório, ternário, reconhecendo que o Espírito é divino por ser, como amor do Pai e do Filho, princípio imanente da vida divina que nos é comunicada e, por conseguinte, digno da mesma adoração e honra reconhecidas ao Filho e ao Pai, Deus, como o Pai e o Filho. A fórmula é adotada no Concílio de Constantinopla (381), que vai ser considerado ecumênico pelos concílios posteriores, formalmente a partir de Calcedônia (451).

É importante observarmos que o Pneuma integra a Trindade pela mesma via que conduziu à consubstancialidade do Filho, mas seguindo agora um roteiro diverso, não mais pelo caminho da geração, senão pelo caminho original da proximidade e da intimidade em si mesma, como princípio intrínseco e quase-formal da comunhão da mesma vida divina.

A Pessoa do Espírito Santo

O reconhecimento de que se deve ao Espírito a mesma adoração e honra devidas ao Pai e ao Filho leva naturalmente à confissão da Trindade e à conseqüente atribuição ao Espírito de tudo que se atribui ao Pai e ao Filho. A experiência de Deus na tradição bíblica e cristã no-lo faz reconhecer como Pessoa, que atua na criação e na história. Distinguindo-se agora em Deus, Pai, Filho e Espírito, devemos reconhecer aos três essa característica pessoal, o que nos leva a falar das Pessoas divinas, do Pai, do Filho e do Espírito.

Toda a Escritura passou a ser lida na perspectiva dos Três, a que se atribuía, nem sempre com a indispensável moderação da análise teológica, tudo que de perto ou de longe se podia submeter a uma interpretação ternária.

Essa divulgação trinitária do mistério de Deus parece ter contribuído, a seu modo, para uma excessiva objetivação da fé, pois a Trindade escapa, por definição, à nossa experiência, e, por conseguinte a um perigoso esvaziamento da experiência cristã como elemento indispensável do conhecimento de Deus e da própria teologia.

Além de se falar do Mistério da Trindade, como se a Trindade fosse misteriosa em si mesma, o fato de serem Três Pessoas uma única natureza, um único Deus, cavando um abismo intransponível entre a fé e a razão, esquecia-se de que a Trindade é misteriosa não em si mesma, pois é pura Luz, mas para nós, e que, portanto, seu mistério, longe de afastá-la da vida, é a garantia mesma da transcendência da vida que levamos em continuidade com o Logos e com o Pneuma.

O drama é que, em conseqüência do reconhecimento do Espírito como Pessoa, passou-se a fazer a teologia do Espírito a partir desse seu caráter pessoal, segundo o mesmo parâmetro com que se faz a teologia do Pai e do Verbo. Com isso, se era levado a atribuir ao Espírito um papel segundo, visto que era indispensável . Para firmar a identidade cristã e garantir a autoridade da Igreja, concentrou-se todo o cristianismo na pessoa de Jesus, que é o Salvador, ponto final. O Espírito não viria então senão coroar ou até mesmo, simplesmente, ornamentar essa salvação, com seus dons e carismas.

A teologia do Espírito Santo feita a partir da afirmação de que é Pessoa, concorre de fato com a primazia do Verbo, consolidada na visão cristomonista da Igreja, perfeitamente ajustável às exigências de racionalidade da modernidade.

O fim da modernidade, quebrando a hegemonia da razão e portanto, do Logos, cria um novo desafio para a teologia do Espírito: Como situar o Espírito em relação ao Verbo? Como encontrar um princípio de distinção entre o Verbo e o Espírito que, longe de os separar, os envolva num mesmo laço, fundado num movimento original de união do Espírito com o Pai e o Filho?

O Verbo e o Espírito

Uma primeira resposta à questão que se tornou premente no despertar da pós-modernidade, de que se podem considerar precursores pensadores como Frederico Schleiermacher (1768-1834) e Sören Kierkegaard (1813-1855), consistiria na oposição do Espírito ao Verbo, na forma como Paulo opunha o Espírito à Lei. Esta tentação, mais condizente com o que Paul Tillich (1886-1965), por exemplo, chama de espírito do protestantismo, parece caracterizar o pentecostalismo, pelo menos na medida em que confere ao Espírito uma primazia sobre o Verbo.

A tradição católica, por sua concepção mesma de Igreja, votada mais para a comunhão na diferença do que pela ruptura do diferente, resiste melhor a esse tipo de violação do equilíbrio entre o Espírito e o Verbo. Apesar da forte influência do pentecostalismo evangélico nos movimentos de renovação carismática, sobretudo de origem norte-americana, o pentecostalismo católico procura de todo modo conservar o primado do Verbo, senão na experiência do Espírito propriamente dita, que escapa a toda norma, pelo menos no respeito religioso e disciplinado das estruturas eclesiais fundadas na primazia do Verbo.

Não obstante, pressionada pelo fim da modernidade, a teologia do Espírito Santo vai procurar se construir em nossos dias não mais a partir da Pessoa do Espírito, nem, muito menos, de sua oposição, relativa, é claro, à Pessoa do Verbo, mas, ao contrário, em vista da articulação, fundada no Novo Testamento, entre as duas pessoas divinas, o Verbo e o Espírito.

Não se trata, portanto, de optar pelo Verbo ou pelo Espírito. É preciso, na verdade, focalizar a teologia do Espírito Santo na articulação entre o Verbo e o Espírito, que se colocam juntos na teologia da salvação justamente porque são indissociáveis, como procedentes do Pai, no seio da Trindade. Dizemos então que a nova perspectiva na Teologia do Espírito consiste em centralizá-la na indissociável união entre o Espírito e o Verbo. Ambos procedem do Pai, mas diferentemente, o Verbo por geração (relação binária) e o Espírito por união (relação ternária) e contribuem assim, também cada uma a seu modo para a realidade da vida que têm em comum e que nos é dada em participação pela missão conjunta do Verbo e do Espírito.

Na sua fala já mencionada, no 1º Congresso Internacional, em 1982, o Pe Congar propunha, de fato, como nova perspectiva da Pneumatologia, voltar às origens do século IVº, para construir uma teologia do Espírito a partir do papel sui generis que lhe é dado desempenhar na vida cristã, de animação da vida, numa linha da causa quase-formal.

Longe de se opor ao Verbo, nesse caso, o Espírito é levado a ser antes de tudo concebido como Amor, animador da relação recíproca Pai-Filho e por isso, indissociável do Filho no cumprimento da missão recebida do Pai, de tornar participantes da vida divina todas as criaturas capazes de Deus e que O acolhem no fundo do seu coração.

É bastante significativo que a Teologia do Espírito sugerida no Catecismo da Igreja Católica (1992) se baseia precisamente no que denomina a missão conjunta do Espírito e do Verbo (nn. 689-690) e sustenta longamente essa tese percorrendo a história da criação e da salvação, desde as origens até a consumação escatológica (nn. 702-747). Ao se aplicar a essa teologia da missão o princípio rahneriano da reprodução, na Economia, da Trindade na Teologia, pode-se partir da Trindade Econômica para a Trindade em si mesma, o Mistério de Deus Pai, Filho e Espírito Santo.

A nova perspectiva em que se coloca hoje a Teologia do Espírito, em continuidade com a teologia feita no século IVº, a partir da vida, que historicamente serve de fundamento a todo ensinamento cristão, através do credo de Constantinopla, não apenas permite ir muito mais fundo no entendimento da fé no Espírito, impondo-se, por isso, como padrão da teologia cristã do Espírito, mas permite uma abordagem mais consistente de uma série de problemas teológicos, que possibilitam uma nova abordagem também dos temas centrais do cristianismo.

  1. À guisa de conclusão: A Teologia do Espírito em face de algumas questões centrais da teologia cristã.

A primeira área teológica central a se beneficiar dessa nova abordagem do Espírito é, precisamente a Trindade, cuja problemática se reduz à afirmação bíblica fundamental de que o Filho, Jesus, mantém com o Pai um relacionamento único e pessoal, como filho unigênito. O Espírito brota naturalmente no seio dessa intimidade, alimentando-a eternamente, autocomunicando-se à humanidade assumida e por meio dela, animando a vida divina de toda a humanidade que diz sim ao Pai.

Afastam-se assim todos os inconvenientes do triteísmo, explícito ou lavar, como está presente, por exemplo, seja na distinção histórica, por períodos, como no caso clássico de Joaquim de Fiori (1130/45-1202), seja na distinção de papéis tal como a entendem a tendência ao culto isolado do Pai, do Filho e do Divino, ou, a seu modo, os diversos pentecostalismos.

Depois da Trindade, a nova perspectiva pneumatológica afeta diretamente a Cristologia, pois o estudo de Jesus passa a dever ser feito à luz do Espírito, amor recíproco do Pai e do Filho, que conduz Jesus em sua vida terrena, da Encarnação à Cruz e que nos é oferecido a todos pelo próprio Jesus glorificado. A constante referência do Filho encarnado ao Espírito, que se passou a denominar de modo geral Cristologia Pneumática, tornou-se o caminho para traçar uma via mediana e mais profunda entre as cristologias “do alto”, que tendem a explicar todos os atos e palavras de Jesus a partir do Verbo, e as cristologias “de baixo”, cuja tendência, ao contrário, é explicar a vida de Jesus unicamente a partir da história, criando a falsa distinção entre o Jesus da fé e o Jesus da história. Do momento em que se analisa a missão do Verbo à luz do Espírito, e vice-versa, fica bem mais fácil compreender o sentido das ações teândricas, que passam pelo Espírito que anima Jesus e o faz operar no próprio nome, em vista da comunicação da vida divina, ações que, como todo agir humano, está de fato condicionado pelos fatores históricos determinantes da forma como são tomadas todas as decisões humanas, as quais, quando justas e retas, são sempre decisões tomadas no Espírito.

Assim por exemplo, tendo em vista a estrutura da IIIª Parte da Suma Teológica de Tomás de Aquino, a análise dos atos e palavras de Jesus, situados entre a confissão de sua divindade e o realismo de sua humanidade, enriquece-se com a ênfase colocada no dom do Espírito, que, na obra tomasiana, recebe o nome bem agostiniano de graça capital, de que trata a 8ª questão dessa IIIª Parte.

Uma terceira conseqüência dessa nova perspectiva se verifica na antropologia cristã, que está, aliás, em continuidade direta com a teologia da humanidade de Jesus. O Espírito, na sua transcendência, é o próprio paráclito, consolador ou defesor, que nos sustenta em nossa humanidade na caminhada para a bem-aventurança. Toda a vida cristã é, antes de tudo, uma vida no Espírito, quer na comunhão pessoal com o Pai, em continuidade com o Filho, quer no seguimento ou imitação de Jesus, quer no serviço religioso prestado a Deus ou na prática da misericórdia e da justiça, para o bem de toda a humanidade.

Nessa mesma perspectiva se inscreve o empenho dos cristãos na promoção da justiça e da paz, que é obra eminentemente espiritual, qualquer que seja a forma concreta e histórica que deva assumir, de acordo com as circunstâncias, indo da coragem de resistir à injustiça ou de combatê-la com as armas da história, à generosa atitude de não-violência, seguindo o caminho de Jesus, que morreu na Cruz para dar testemunho da verdade.

Finalmente, ainda dentro do âmbito da antropologia, deve-se observar que a nova perspectiva pneumática, a partir da vida, supõe que no centro da existência cristã está a oração, a intimidade com o Pai. Observamos a necessidade de resgatar, no catolicismo atual, o papel primordial e insubstituível da oração teologal, que é, de fato o momento por excelência da animação pelo Espírito de nossa vida, pessoal e comunitária.

Assim, ao concluir, diremos apenas que entendido a partir da vida, cuja fonte transcendente é o Verbo, que está junto do Pai, o Espírito, como animação da vida divina em si mesma e por nós participada, torna-se, no contexto da pós-modernidade, a face definitiva de Deus, que é Amor, envia sua Palavra por Amor e nos chama à vida no Amor. Num mundo cada vez mais sensível ao papel decisivo do cuidado, com a natureza e com a humanidade no seu conjunto, o Espírito que é propriamente relação, amizade, comunicação e diálogo, é chamado a ser a marca de nossa relação com Deus, testemunhada por Jesus.

Comunidade Javé Nissi

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