Uma velhinha de Siracusa…

Uma velhinha de Siracusa…

Uma história narrada por São Tomás de Aquino: uma bondosa velhinha de Siracusa orava diariamente pela vida do tirano Dioniso. Informado, o tirano mandou chamá-la e a interrogou sobre esse comportamento, já que era odiado por todos. A boa senhora respondeu: “quando eu era menina, estávamos sujeitos a um tirano, cuja morte desejava; morto, veio outro pior, e não via a hora de nos livrar dele. E veio um terceiro, ainda pior, que és tu. Portanto, se fores derrubado, sucederá um pior!”. Guardado o contexto histórico, a narrativa serve neste momento anterior à escolha dos dirigentes municipais, em meio a denúncias, prisões, cassações, CPMIs, etc.

Nossa história recente mostra que, em muitos casos, a sucessão de um governo, acusado de corrupção, foi substituído por outro, tão ou mais corrupto ainda. Nossa democracia não parece ser mais ética e proba do que o “regime dos coronéis” ou do “regime militar” ou da “república neoliberal”. Nossos governantes são substituídos pelo processo eleitoral, mas é decepcionante constatar que o sucessor muitas vezes é pior do que o antecessor. Talvez o receio da velhinha de Siracusa explique porque o povo reeleja governantes que critica.

São Tomás afirma que a política tem um conteúdo ético. A ética pauta-se na liberdade moral e a política no bem comum, numa participação consciente. Isso corresponde a uma postura teológica, subordinada a valores transcendentes e se ordenando à eternidade. Sendo assim, os bens particulares devem ser ordenados ao bem comum.

A vida política voltada para a realização do bem comum, conforme São Tomás possui duas ordens. A primeira: uma estrutura jurídica que assegure a paz e possibilite levar uma vida virtuosa (virtudes pessoais e sociais). Isso nos leva perguntar: o sistema de leis atual tem favorecido viver conforme valores morais (vide a questão dos anencéfalos); a impunidade não tem o efeito de aumentar a violência?

A segunda: serviços prestados à coletividade por meio dos governantes. É obrigação dos governantes instaurar a vida digna, conservá-la e melhorá-la. O Estado não é o fim último do homem, que é a vida eterna. É apenas um meio, imprescindível, para alcançar a o bem comum. O Estado é laico, mas as pessoas que o compõe possuem o direito de expressar e viver sua fé, influindo desta forma no próprio Estado. É dever do governante garantir esse direito e as condições para que o cidadão possa exercê-lo.

Estas proposições tomistas nos ensinam duas lições fundamentais:

(1) Não pode existir um bem particular que não esteja em função da coletividade. Por exemplo, o conhecimento que um indivíduo possui só é legítimo se ele for colocado a serviço da melhoria da vida coletiva. Dura crítica aos estudantes que buscam o enriquecimento pessoal sem devolver à sociedade a ciência adquirida, através do serviço e da responsabilidade social.

Aplicada também à propriedade particular. Nesta ótica, é inadmissível um indivíduo possuir mais do que necessita para sua própria subsistência. Toda acumulação de bens que leva ao usufruto do supérfluo e uma vida ociosa é um roubo do direito de outros levarem uma vida digna. A Gaudium et Spes afirma que “toda propriedade tem uma função social”. Isso atinge o centro da corrupção, quase que endêmica, que atinge nosso Estado. Esta é uma voz profética que denuncia um Estado, corroído pela corrupção e desvios de verbas, não é capaz de assegurar as necessidades mínimas de saúde, educação…

(2) O Estado não é a verdade última do homem na face da terra. O homem é chamado à realização de um destino superior ao que o Estado é capaz de assegurar. A finalidade da existência humana não se esgota com a realização das necessidades materiais. O homem possui uma abertura para o Absoluto e essa busca é uma sede infinita e infinda. E essa sede nenhum sistema ou ideologia podem saciar.

Não há dúvidas de que a sociedade precisa de uma autoridade sem o que viria a anarquia. O problema é: o que fazer quando um povo é governado por alguém que não possui as qualidades necessárias para gerir o Estado em vista do bem comum que ultrapassa o benefício privado? Derrubá-lo? É o direito à revolução, visto hoje, como direito à mobilização social.

O poder exercido por interesses privados (individuais ou de grupos) é ilegítimo: do mesmo modo que o direito à propriedade cessa com o seu abuso, o governante que não zela pelo bem comum e pela prática da virtude, perde o direito de exercer a autoridade sobre o seu povo. Assim, um movimento para depô-lo é justo.

São Tomás condiciona o direito à mobilização (revolução) a certos princípios: (1) a ação não pode ser individual, mas pública; (2) não agir pela força, é preciso esgotar todos os outros meios possíveis; (3) o movimento não deve acarretar males maiores; (4) é preciso ter certeza de que o governo seguinte será melhor do que o deposto. E isso nos leva à velhinha de Siracusa…

Tácito Coutinho - Tatá - Moderador do Conselho da Comunidade Javé Nissi

Moderador do Conselho da Comunidade Javé Nissi

Deixe seu comentário
Captcha Clique na imagem para atualizar o captcha..