Comunidades Cristãs
I. As Comunidades Cristãs, uma reflexão inicial.
1. Algumas considerações iniciais
Um dos problemas que a Igreja enfrenta atualmente é a adequação dos serviços pastorais ao crescimento populacional e urbano, gerando, muitas vezes, um “vazio” que é ocupado por outras denominações religiosas e refletindo a falta de um espaço onde se possa vivenciar fé como uma Comunidade Cristã.
As Paróquias, por seu tamanho e número de fiéis, atividades pastorais e diversos movimentos, número reduzido de padres e de agentes permanentes, não têm conseguido dar uma resposta adequada a esta necessidade, reduzindo-se muitas vezes à prestação de serviços burocráticos em suas secretarias, atendimento ocasionais para a confissão, reuniões noturnas e, sobretudo, a celebração da Eucaristia.
Sabemos que estas atividades são importantes e o máximo que se pode fazer, mas é pouco para atender às necessidades de um povo cada vez mais atingido pelo secularismo, consumismo, ateísmo e hedonismo. Nosso povo se torna presa fácil de todos estes “ismos” por não possuir uma formação sólida em sua maioria, e também pela falta de um espaço onde é possível encontrar alguém que caminha na mesma fé, disposto a escutar, partilhar, rezar. Um espaço cristão onde é possível estar, permanecer. Um espaço que espelha a comunidade cristã.
A Paróquia não pode ser só o lugar onde se celebra a Eucaristia e os demais sacramentos, embora estas atividades sejam de suma importância e insubstituíveis, deve também ser a referência comunitária, o espaço onde os cristãos se encontram e partilham a experiência da fé.
Nossa visão de Igreja Comunidade ainda está muito ligada ao “fazer” não privilegiando o estar, partilhar, vivenciar. Nossas reuniões, por mais sinceras que sejam, quase sempre são reuniões de agenda, tarefas, onde sempre estamos pensando o que fazer, quando fazer e quem irá fazer.
Um outro problema atual é que com o crescimento das atividades evangelizadoras, falta à Igreja um serviço de acolhimento e formação dimensionado para o aumento progressivo dos fiéis, fruto da “nova evangelização”.
Muitos católicos foram “reconquistados”, “reevangelizados”, mas temos dificuldades em acolhê-los e dar a eles uma oportunidade de vivência comunitária verdadeira. Nossas Paróquias, pelos motivos já apresentados, não conseguem realizar este serviço de maneira eficaz, sobrando para estes fiéis duas opções: a prática de um cristianismo rotineiro ou “burocrático” e a possibilidade de participar ativamente de uma “comunidade evangélica”. Não podemos descartar a possibilidade sempre presente do abandono puro e simples.
A Renovação Carismática Católica, como expressão de Igreja, também padece dos mesmos males. Geramos muitos cristãos nos Seminários de Vida e Experiências, evangelizamos muitos dos que vão aos Grupos de Oração, promovemos grandes eventos de massa, mas ainda não conseguimos criar um serviço adequado de acompanhamento, vivência e perseverança.
Nossas paróquias não absorvem todos os que passam pelos Grupos de Oração, Seminários e Experiências. Além das dificuldades já mencionadas, existe a dificuldade de compreender a experiência de Igreja que a Renovação Carismática faz e os preconceitos que impedem ver que “a comunhão supõe a diversidade” e que a caridade nos leva a aceitar “o outro que é diferente de mim”. A visão uniformizante e voltada para um único modelo de Pastoral e Igreja, muitas vezes excludente, que diversas paróquias possuem, dificulta o acolhimento dos evangelizados oriundos da Renovação Carismática, gerando tensões e abandonos.
Nossas atividades se resumem, na maioria das vezes, nas Reuniões da Equipe de Serviço e dos Grupos de Oração e ocasionalmente uma outra atividade, como Seminários, Experiências…. No restante do tempo, os que foram evangelizados não tem aonde ir para receber instrução, formação, oração, que são necessárias para sua perseverança e ainda, não têm uma referência de comunidade onde possam estar e vivenciar a fé recém adquirida ou despertada.
A evangelização supõe a Comunidade Cristã, não de maneira teórica, mas de maneira concreta. Lugar onde os cristãos podem se reunir para celebrar, conviver, partilhar, rezar.
Neste contexto é que a Renovação Carismática pensa nas Casas de Formação: referência comunitária e espaço para vivência da experiência de fé.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em seus Documentos nº 54 e nº 71, nos dá algumas orientações preciosas quanto a adequação das paróquias e serviços pastorais para os tempos atuais.
2. Comunidades “vivificadas pelo Espírito” – uma visão paulina.
A experiência de Deus com a humanidade, que emerge da mensagem e do estilo de vida de Jesus, foi à origem da primeira onda do movimento de Jesus que era composta, sobretudo de judeus que falavam hebraico (aramaico) e que se tornaram cristãos; eles esperavam a vinda de Jesus, como juiz do mundo. Nós, porém, no Novo Testamento tomamos conhecimento dos segmentos do movimento de Jesus, sobretudo através dos judeus da diáspora que falavam grego e que se fizeram cristãos. No ambiente deles este movimento judeu-cristão se transformou numa Igreja missionária universal.
Para estes cristãos a experiência do Jesus histórico não era o fundamento direto da sua fé, da sua Igreja ou da sua missão (eles jamais se encontraram com Jesus); o que desempenhou tal papel foi o batismo (sacramento) deles no Espírito de Jesus. O Deus destes cristãos era e é o Deus que não abandonou Jesus depois da morte, mas fez dele “Espírito vivificante” (1Cor 15,45). Os cristãos que nele são batizados são, portanto, pneumáticos ou carismáticos.
Esta era a idéia sustentada pelos judeu-cristãos helenistas em Jerusalém, o grupo que cercava Estêvão. Estes foram logo expulsos de Jerusalém. Muitos deles foram para a Síria, passando pela Samaria, sobretudo para Antioquia. E lá finalmente fundaram as primeiras grandes comunidades missionárias da Igreja. Foi para lá que também Paulo se dirigiu a fim de se fazer instruir depois da sua conversão.
A solidariedade e a igualdade de todos os cristãos “no Espírito” (At 2,17s; 2Cor 5,17), “que viviam do Espírito” (Gl 5,25; 6,1), “criação nova” (Gl 6,15; 2Cor 5,17) eram as frases-chave deste movimento missionário “antioqueno-cristão”, judeu-cristão e da sua teologia.
Esta eclesiologia teve a sua origem no batismo no Espírito (visto aqui como sacramento e experiência numa realidade única) , o fundamento de toda a vida da Igreja. Por meio do batismo no Espírito estes crentes viviam como se já fossem redimidos, em um mundo novo e na plenitude do tempo. Por isso, eles não se preocupavam com o “mundo velho”, praticamente não se envolviam com este. Para eles este mundo se tornara irrelevante. Pelo menos dentro da comunidade dos crentes eles viviam já “em um mundo novo”, completamente alienado e “não em casa” no mundo externo.
Alguns textos dos Atos dos Apóstolos (At 19,1-7; 18,24-19,1) são muito esclarecedores sobre esta idéia primitiva da Igreja. Parece que foram discípulos de Jesus que haviam sido batizados por João Batista, porém, apesar disto, haviam também recebido instruções especiais “sobre o que se referia a Jesus” (At 18,25). No entanto, eles nada haviam ouvido falar sobre o Espírito! Apoio era um deste grupo e, por isso, precisou ser instruído. Ele teve que receber o batismo no Espírito, a base de toda a experiência carismática da comunidade.
Assim encontramos o contraste entre o batismo na água e o batismo no Espírito desde a tradição mais antiga (fonte Q) em diante (Mt 3,11; Lc 3,16) em todos os níveis do Novo Testamento (Mc 1,8; Jo 1,26.31.33; At 1,5; 11,16; 1Cor 12,13).
Os Atos (2,17-21) aplicam a profecia de Joel a toda a comunidade cristã: todos os que recebiam o batismo cristão formavam o único povo profético e pneumático de Deus; eles eram membros iguais, sem predomínio ou dominação nas relações recíprocas.
Este messianismo carismático, resumido por Paulo na frase: “Cristo é poder e sabedoria de Deus” (1Cor 1,24), de fato remonta a uma teologia muito difundida na Igreja primitiva: “vós estais em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus” (1Cor 1,30). Daí o nome de cristãos que se dava em Antioquia as pessoas que estão em Cristo Jesus que é pessoalmente cheio de Pneuma: “Ninguém pode dizer ‘Jesus é o Senhor’ sem ser por meio do Espírito” (1Cor 12,3).
Naquele tempo toda a costa mediterrânea estava cheia de carismáticos (“pneumáticos”), sobretudo de entusiastas religiosos, freqüentemente de origem oriental. Até os cristãos expressavam a sua experiência especificamente cristã nos termos muito contextuais da experiência que se baseava na experiência pentecostal “pascal” do batismo no Espírito.
Paulo, convertido ao cristianismo, viu-se diante, sobretudo desta forma de cristianismo primitivo. Não é sem motivo que também tradições pós-paulinas falam da Igreja como construída sobre os “apóstolos e os profetas” (cf. Ef 2,20).
Paulo quer igualmente colocar o movimento cristão “carismático” com solidez no terreno em que evidentemente outras leis não-cristãs estão em vigor, por exemplo, um governo civil, um sistema particular de família e de trabalho etc. Segundo Paulo, os carismáticos devem envolver-se também nisto. Por isso, para ele um escravo poderia ser livre na comunidade, mas permanecer escravo no mundo. Muitos carismáticos não se preocupavam absolutamente com o mundo e às vezes nem sequer queriam trabalhar, o que Paulo combateu ferozmente.
Como cristãos — movidos pelo Espírito — eles já vivem em um mundo novo livre (o que se aplica com igual força ao próprio Paulo). Mas Paulo quer que estes cristãos livres também sejam vistos vivendo no mundo como seres humanos. E com todo direito. Segundo Paulo, porém, eles devem fazer isto como membros integrados na sociedade greco-romana (exceto quando isto representa violência para a sua fé). Paulo faz esta opção por razões pastorais. Se — raciocina Paulo — os cristãos são bons cidadãos do império romano, no sistema do estado, com o tempo o trabalho da missão cristã ficará beneficiado. Muitas das advertências de Paulo são inspiradas por semelhantes motivos de pastoral missionária: não ofender os outros, porque estes são cristãos em potencial. Esta é uma expressão de estratégia pastoral contextual, não é querigma nem dogma.
“O poder do Espírito”, a palavra-chave do movimento carismático cristão no início, era a convicção basilar desta geração de cristãos. Todos os membros da comunidade tinham de fato autoridade na comunidade com base na sua própria inspiração por parte do Espírito — mesmo naquele tempo a autoridade diretora das igrejas cristãs era institucionalizada com base no batismo do Espírito e nos fenômenos carismáticos que o acompanhavam e se orientava para a formação da comunidade. Paulo veio a conhecer esta idéia originariamente igualitária da Igreja como uma comunidade de irmãos e irmãs através das tradições anteriores a ele.
A idéia de Igreja calorosamente compartilhada por Paulo acha-se cristalizada em Gl 3,26-28; uma espécie de estatuto ou carta magna da liberdade cristã, que é um hino batismal antigo proveniente das comunidades mais antigas e pré-paulinas:
Vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (Gl 3,26-28).
O grego diz literalmente: “o macho e a fêmea não existem mais” — clara referência à tradução dos Setenta de Gn 1,27: “criou-os macho e fêmea”. Nesta linha de pensamento, o batismo do Espírito (sacramento e experiência com afirmamos acima) é a restauração escatológica de uma ordem da criação com igualdade que foi historicamente destruída e na sociedade — é uma “nova criação” (Gl 6,15). O batismo no Espírito remove as discriminações históricas. As três categorias dos discriminados ficam claras através da perspectiva judeu-cristã: os gentios (discriminados para favorecer os judeus), os escravos (para favorecer os livres) e as mulheres (para favorecer os homens).
Em teoria, o batismo cristão remove completamente todas estas oposições sociais e históricas dentro da comunidade dos crentes. Naturalmente, esta é uma afirmação que exprime a esperança que exige ser realizada agora, como modelo na comunidade.
Apesar de toda a estratégia pastoral, que se mostra bem disposta em relação ao mundo romano, podemos, entretanto, ainda sentir em Paulo o vigor original de toda a tradição libertadora de Antioquia e da Igreja primitiva: “Onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17; Gl 5,13; também influenciou Mc 10,16).
Dentro das comunidades cristãs dos crentes, as relações que implicam submissão não devem mais prevalecer. Encontramos este princípio em todo o Novo Testamento e ele determinará fortemente também a idéia de ministério do Novo Testamento. Esta eclesiologia igualitária não exclui absolutamente a direção e a autoridade; entretanto, em tal caso a autoridade deve estar repleta do Espírito Santo, do qual nenhum cristão, homem ou mulher, fica excluído por princípio, com base no batismo do Espírito.
3. O ministério nas primeiras comunidades cristãs
a) Introdução
Jesus confiou o encargo de continuar a proclamação do reino de Deus aos seus discípulos. Estes, seguindo o seu exemplo, começando pela Palestina levaram a vida de pregadores itinerantes, na expectativa da vinda iminente do reino de Deus. O cristianismo estendeu-se principalmente às comunidades missionárias dos cristãos judeu-helenistas, orientadas também para os pagãos
b) Eclésia: comunidade de cristãos crentes
No grego comum da época, eclésia indicava a assembléia dos cidadãos (do sexo masculino) livres de uma polis ou cidade para fazer eleições; as coisas continuavam assim também mais tarde, quando este direito de votar já se tornara formalidade, pura aclamação. Entretanto, grupos com fortes laços internos, como os primeiros cristãos, desenvolveram rápido a sua própria linguagem.
Através da tradução do Antigo Testamento dos Setenta, a qual traduziu o hebraico “ehal lahweh “assembléia” do (ou em torno do) Senhor” — como sinagoga do Senhor e outras como ” eclésia do Senhor”, aconteceu que os primeiros cristãos só usaram “eclésia” para eles e nunca sinagoga (exceto Tg 2,2).
Eles fizeram isto em contextos variados: para a “livre associação” de cristãos reunidos “na casa de X”; também para as várias comunidades domésticas de uma cidade, “a igreja que fica em Corinto”; usavam-na ainda para as comunidades cristãs de algumas cidades e finalmente para todos os cristãos do mundo. Aí eles imitavam o uso judeu-helenista de eclésia. Traduzir eclésia por “igreja” é, portanto, em certo sentido, um anacronismo.
A palavra eclésia no Novo Testamento significa o grupo cristão em si, quer local, quer espalhado como muitas comunidades domésticas em todo o mundo e não tanto a real reunião dos cristãos.
Paulo fala no plural de eclésia: as eclésias de uma província (os cristãos da Galácia, da Ásia Menor, da Macedônia ou da Judéia: 1Cor 16,1; 16,19; Gl 1,2; 2Cor 8,1; 1Ts 2,14), mas também de “todas as eclésias dos gentios” (Rm 16.4) e de “todas as eclésias de Cristo” (Rm 16,16) ou “eclésias de Deus” (1Cor 11,16-22).
Nas epístolas aos Colossenses e aos Efésios, a palavra eclésia é muitas vezes usada para indicar o movimento cristão universal. O conhecimento consciente de pertencer a um povo universal de Deus, típico das primeiras comunidades cristãs, provém claramente de raízes judaicas.
c) “As livres associações” cristãs se reúnem nas comunidades domésticas
• Comunidades domésticas cristãs
A Igreja primitiva fez da ôikos — isto é: da habitação familiar da cidade greco-romana — a base pastoral de todo o movimento cristão: “a eclésia que se reúne na casa de Áquila e Priscila” em Éfeso (1Cor 16,19); “a eclésia que se reúne na casa de Prisca e Áquila” em Roma (Rm 16,5); “a eclésia que se reúne na casa de Filêmon” em Colossas (Fm 2); “a eclésia que se reúne na casa de Ninfa” em Laodicéia (Cl 4,15). A partir de então, as referências se repetem, direta ou indiretamente, falando do mesmo fenômeno (1Cor 1,16; 16,15s; At 12,12-17; 16,15.31-34; 18,8; cf. também Jo 4,53; At 10,2; 11,14; talvez também Rm 16,10s.l4s; ICor 1,11; Fl 4,22).
A estrutura básica das primeiras comunidades de crentes cristãos era idêntica à que constituía então a unidade de base da vida civil nas cidades, isto é, a casa. A designação de eclésia era dada a grupos que tinham por base uma casa particular com duas aplicações:
– A toda a igreja local, que às vezes se reunia em uma casa (1Cor 14,23; Rm 16,23; cf. 1Cor 11,20);
– A todo o movimento cristão, que igualmente é chamado de eclésia.
O ôikos ou casa, daquele tempo, possuía uma coesão maior do que a nossa família moderna. Servos, escravos e outros também pertenciam à “casa”. Havia também casas não-cristãs onde os cristãos se reuniam (Rm 16 10s.l4s), e casas em que o pai da casa era cristão, como Filêmon, ao passo que o seu escravo, Onésimo, não o era.
As conseqüências desta estrutura das comunidades cristãs primitivas são claras dentro de uma perspectiva sócio-histórica. Como conseqüência, os grupos cristãos eram integrados em um sistema preexistente de relações diretas, tanto internamente (com os outros membros da família, parentes, servos), quanto externamente (com os amigos, conhecidos, clientes — a clientela — e com freqüência pessoas da mesma profissão ou vocação).
Na igreja primitiva, a comunidade doméstica ou “os irmãos na fé” (Gl 6,10) era o princípio do cristianismo em uma cidade ou província particular do império greco-romano.
A casa era o lugar onde se fazia a pregação ou instrução, e também onde o povo comia e bebia junto, onde celebrava a eucaristia etc. Tratava-se na maioria de moradores da cidade com boa situação financeira que se haviam tornado cristãos e que punham a sua casa à disposição da comunidade e muitas vezes ajudavam até financeiramente.
Embora socialmente estes guias ou líderes, homens e mulheres, proprietários de grandes casas, pertencessem às classes em minoria, as comunidades em si eram formadas por pessoas de todas as camadas sociais, com exclusão da aristocracia. Encontramos este tipo de comunidades domésticas até o século III; no século IV foi possível ter edifícios separados para servirem de igrejas.
O fato de as casas de certos cristãos terem tido um lugar central quanto ao local onde era vivida a vida da eclésia (embora desde o princípio os judeu-cristãos costumassem ir também ao templo de Jerusalém), tem inconfundíveis conseqüências sociológicas para a compreensão do seu trabalho missionário.
• Comunidades e sociedades livres (collegia)
O cristianismo primitivo era uma fraternidade de membros iguais: teologicamente, com base no Batismo Sacramental e a experiência do e no Espírito, e, sociologicamente, em harmonia com o modelo romano helenista das sociedades livres, chamadas de “collegia”, que também se reuniam “na casa de NN”.
A forma de organização dos “collegia” ou associações mais democráticas e igualitárias (religiosas ou não) propiciou o modelo para as primeiras comunidades domésticas cristãs. No império existiam muitas destas associações, mesmo de tipo religioso, sobretudo muitas espécies de associações de cultos orientais.
• A organização e direção na eclésia
Embora originariamente e por muito tempo o ôikos tenha sido o lugar onde os cristãos se sentiam como eclésia e se reuniam todos juntos, a casa não era o princípio fundamental da organização e da estrutura (isto é, o princípio da ordem eclesial) das comunidades cristãs.
A formação da comunidade cristã não seguiu o modelo eticamente legitimado e hierárquico da família greco-romana, como isto se achava prescrito e era respeitado nas normas para a organização da família (Peri oikonomias) que então estavam em vigor — até Aristóteles escreveu uma delas.
Este princípio do ôikos não explica os vários e diferentes modelos de direção e autoridade das comunidades cristãs: a autoridade de alguns vindos de fora era, sob muitos aspectos, maior do que a autoridade do “chefe de família” (paterfamilias) da casa; estas autoridades externas incluíam os apóstolos e os seus colaboradores e até muitos doutores e figuras proféticas das comunidades.
E nem isto oferece explicação para o forte senso, mais do que simplesmente local, de unidade — koinonia — de todas as comunidades domésticas cristãs, não só numa cidade, como também na mesma província e muito mais longe ainda.
d) A eclésia como colégio ou livre associação no mundo greco-romano
Naquele tempo o Império Romano helenista possuía uma riqueza de associações e clubes, de sociedades e corporações. É impressionante que ainda no século II oficiais do Império Romano, incluindo escritores anticristãos, encarassem as muitas “ecclesiae” ou assembléias cristãs em termos de “uma associação livre”: o modelo da associação que se “reúne na casa de NN”. A inscrição para tal associação dependia da livre decisão e da iniciação.
Freqüentemente, e isto era também o caso de todas as formas de comunidade de culto orientais do império, estas associações reuniam pessoas que tinham o mesmo ofício ou praticavam a mesma profissão (se bem que os “collegia” cristãos socialmente fossem na verdade bastante mistos). Em harmonia com o antigo costume, os seus locais de trabalho e de negócios eram também vizinhos uns dos outros: a rua dos artesãos de couro, a rua dos ferreiros etc. Paulo, fabricante de tendas, sentiu-se feliz de morar em Corinto com os ricos fabricantes de tendas Prisca e Áquila (At 18,2s).
As associações faziam também atos de culto e tomavam as suas refeições regulares juntos. O clube se encarregava de cuidar da sepultura dos seus membros e pagava as despesas do sepultamento, sendo que todos os anos havia celebrações comemorativas em memória de membros falecidos da associação. Estas associações dependiam, na maioria dos casos, de patronos, homens ou mulheres, tutores masculinos ou femininos que davam ajuda financeira. No Novo Testamento encontramos um caso idêntico com pessoas como Estéfanas (1Cor 15,15-18) e Febo, diakonos e prostatis da comunidade (Rm 16,1-12).
Paulo pede à comunidade que demonstre maior respeito aos benfeitores das comunidades domésticas (1Cor 16,15-18), um fato que, dentro de uma experiência carismática da Igreja, indica que se faziam críticas por parte da comunidade eclesial, críticas que equivaliam a violações reais do sistema igualitário da fraternidade, por quaisquer motivos mesmo que razoáveis.
As associações civis e religiosas do tempo tinham forma livre e democrática de organização. Em questões de procedimento e organização, elas adotavam muitas vezes a estrutura do governo civil, com freqüência também os seus títulos oficiais, embora todos os clubes tivessem costumes próprios.
As comunidades cristãs, com certeza, não se adaptaram deliberadamente às estruturas existentes para estes collegia.
4. Estruturas de autoridade nas comunidades dos primeiros cristãos
Nenhum grupo pode existir por muito tempo sem algumas estruturas institucionais. Esta é uma lei sociológica bem conhecida. Neste sentido, “igrejas livres” não podem ser encontradas em lugar algum pelos sociólogos entre as primeiras comunidades cristãs. Mais cedo ou mais tarde, todas estas comunidades tiveram de enfrentar a pergunta: “Como são resolvidos os conflitos na vossa comunidade ou associação? Quem tem o encargo disto?” Temos maior conhecimento da estrutura comunitária pré-paulina, paulina e pós-paulina, embora estas sejam apenas um setor das igrejas cristãs primitivas.
a) Direção local e serviço.
Embora existisse flexibilidade nos conceitos das lideranças locais, havia algo parecido com uma direção “residencial” nas comunidades locais, mesmo que nas comunidades paulinas estas não levem quase nunca a títulos técnicos, que encontramos naquele tempo em todas as associações livres que se reuniam “na casa de NN”.
Podemos ver uma diferenciação gradativa, progressiva e mais uniforme dos ministérios de liderança ou guia nas comunidades locais, como ainda na terminologia. Na primeira epístola de Paulo, o documento cristão mais antigo por nós conhecido, os ministérios de liderança ou orientação são completamente indefinidos:
“Nós vos rogamos, irmãos, que tenhais consideração por aqueles que se afadigam no meio de vós, e vos são superiores (presidem e apóiam ou vos ajudam financeiramente) no Senhor e vos auxiliam com seus avisos” (1Ts 5,12).
Todas as três tarefas aqui resumidas são expressas por um só termo; assim sendo, não indica três ministérios diferentes, mas o que conviria que fizessem ou o que deveriam fazer os chefes de uma comunidade cristã e todos os que animam um grupo cristão. O fato de Paulo pedir a uma comunidade cristã que mostre especial respeito a tais pessoas indica, pelo menos, um certo grau de oposição latente em face de atitudes não-igualitárias de um grupo de irmãos e de irmãs da Igreja, que desde o princípio era igualitária.
Mas até este momento, termos estereotipados para este ministério na Igreja ainda não apareceram (cf. também Rm 12,8s, uma epístola, escrita depois da primeira epístola aos Tessalonicenses, aos Gálatas, 1 e 2 aos Coríntios).
Na epístola aos cristãos de Roma (Rm 12, 8s), Paulo fala de diferentes dons, do dom da profecia, do ensino, das advertências, do cuidado com os pobres e da direção. Direção aqui é entendida em sentido estrito, talvez referente ao governo e à administração ou até à sagacidade financeira, como um serviço diferente da profecia, do magistério etc.
Em todo caso, direção também pode indicar proteção, isto é, o serviço prestado pelos tutores de ambos os sexos colocados à frente da Igreja que, como Febo, vão ganhando ascendência nas igrejas (como também nas “associações livres” do tempo).
Certamente não existe ainda nenhum procedimento formal, nem estrutura litúrgica especial, para a seleção e nomeação dos chefes específicos, profetas ou doutores das comunidades.
Estes diferentes papéis sociais nas comunidades têm em comum o dado de que são todos chamados de carismas, dons, na verdade dons de Deus, de Cristo ou do Espírito.
As várias listas mostram que havia grande liberdade na organização estrutural oficial das comunidades, e também que em toda parte surgiu espontaneamente um grau de ordem eclesial, ainda que diferenciado. Aqui, a preocupação (sobretudo nas listas das epístolas aos coríntios) referia-se menos às pessoas e à sua posição na Igreja do que ao que elas praticamente faziam para criar comunidades cristãs, isto é, às suas funções específicas.
Diante da progressiva multiplicidade (que teria acarretado consigo também o status), Paulo procura a unidade de um grupo cristão por meio de uma série de ministérios variados. Entretanto, embora pedindo que todos se unam para formar a comunidade, ele deixa lugar à diversidade.
Por outro lado, não podemos dizer que a evolução efetiva, para um tipo cada vez mais uniforme de organização, ressalte diretamente da particular tendência paulina para a formalização que, não obstante, percebemos também nas igrejas paulinas. Muitos fatores tiveram parte na tendência para um modelo uniforme, e certamente as premissas para isto não se encontram exclusivamente nas comunidades paulinas.
No fim deram origem igualmente a uma série formal de títulos para os ministros e para o ministério na Igreja, e até mesmo a algumas regras e critérios para a seleção dos candidatos para o ministério. O ministério no sentido formal é, em última análise, considerado essencial para uma organização sadia da comunidade cristã.
Completamente independentes da reflexão teológica, esta é a imagem sociológica apresentada pelas primeiras comunidades cristãs, de que nós temos o melhor conhecimento histórico, das comunidades que existiram antes de Paulo, no seu tempo ou depois dele.
As características da sua ordem interna estavam ligadas indubitavelmente ao conteúdo teológico das livres associações cristãs greco-romanas que possuíam o seu centro “na casa de X”, apesar de algumas diferenças provenientes das críticas culturais cristãs.
Sem nenhuma premeditação, estas comunidades (por serem filhas do seu tempo) adotaram algumas formas de organização tiradas tanto do seu próprio passado na sinagoga judaica quanto da vida em uma polis greco-romana, algumas vezes espontaneamente, porém, mesmo assim, com críticas cristológicas.
b) Resumindo
• Uma abordagem sócio-histórica mostra-nos que, nas primeiras e mais bem conhecidas formas de organização eclesial (paulinas e pré-paulinas — que representam somente um setor das igrejas cristãs das origens) não havia diferença alguma entre ministérios e serviços. Na vida muito variada destas comunidades de crentes existe uma sadia autoridade ou direção, em nível local e em nível mais amplo, com base na missão, na catequese, na profecia, na liturgia e nas muitas outras espécies de atividades através das quais alguns cristãos em particular fazem da sua fé a sua atividade para edificar a comunidade. Estes ministérios são de muitas espécies. A autoridade na direção (em todos os tipos de formação de grupos) é um dos caminhos para edificar a Igreja.
• Desde o princípio do cristianismo, na Igreja primitiva houve também uma reação a visão paulina da Comunidade – Igreja. “Alguns de Tiago” eram claramente contrários à posição de Paulo, segundo a qual os pagãos podiam tornar-se cristãos sem se circuncidarem. Estes cristãos da comunidade de Jerusalém, dentro do judaísmo, continuaram a praticar a circuncisão. No entanto, depois da Guerra Judaica, não sabemos mais nada a respeito da comunidade de Jerusalém, o que leva alguns estudiosos a supor que eles tenham perecido durante a guerra; outros acham que eles fugiram.
5. Mudança das “comunidades domésticas” para a “casa de Deus”
A mudança que vemos surgir no fim do Novo Testamento e, ainda mais, na primeira metade do século II não é tanto transição de uma direção antes carismática e depois institucional, quanto consolidação e fortalecimento da direção local que se apropriou da autoridade doutrinal dos profetas e dos doutores anteriores.
A questão era a mesma de antes: quem tem autoridade na Igreja? No fim do século I, vemos que o conflito entre as autoridades nas comunidades foi decidido a favor de crentes que tinham o título de episkopos (presbítero) e diácono. A tendência de reservar toda a autoridade exclusivamente a eles torna-se clara. Principalmente, o poder dos patronos, tutores dos dois sexos, foi sendo gradativamente neutralizado e o fenômeno dos profetas cristãos, muito difundido na Igreja primitiva e respeitado quase sem críticas, foi sendo pouco a pouco abolido.
O episkopos e o presbítero agora tomam para si esta autoridade profética, mesmo que este conflito entre a direção hierárquica da Igreja, que se está oficializando, e a profecia (com base no batismo do Espírito) dure pelos séculos afora e freqüentes vezes constitua o cerne profundo e real das polêmicas heréticas e anti-heréticas.
Mesmo que o povo continuasse a se reunir em comunidades domésticas, as frases agora usadas são “a casa de Deus” (1Tm 3,15); “a grande casa” (2Tm 2,20), cujo presbítero/episkopos é o “pater familias” e o guia ao mesmo tempo de todo o presbitério.
Ele é descrito como o bom chefe de família e esposo, “marido de uma mulher” segundo o modelo do ôikos greco-romano (1Tm 3,2; Tt 1,7ss). Aqui são adotadas as estruturas estritamente hierárquicas do ôikos do tempo, contrariamente às situações anteriores em que as comunidades domésticas eram uma livre associação de iguais, ainda que com muitos tipos de autoridades baseadas numa contribuição inspirada pelo Espírito. Agora os cristãos deviam submeter-se à autoridade única.
A partir de então, os cristãos adotaram a hierarquia, já que esta era também matéria ética de honra e característica de virtude cívica no seu ambiente cultural. A mulher estava sujeita ao marido e o escravo ao paterfamilias — ainda que estas relações sociais e políticas devessem ser minimizadas por um espírito cristão de amor que impregnava tudo. Entretanto, dentro destas relações hierárquicas de tal época em diante, a obediência foi a palavra-chave.