Fé e inculturação: desafios contemporâneos
Johann Baptist Metz, teólogo alemão que tem trabalhado intensivamente o significado da inserção do ato de fé na história de cada ser humano, escreve:
“Uma fé cuja natureza seja bem compreendida está sempre e necessariamente situada na história, porque só dentro da história pode a fé descobrir a transcendência revitalizadora e salvífica. Consequentemente, a fé está também ligada sempre à situação histórica em que se encontra, porque só dessa maneira pode passar a fazer parte da grande trama da história da humanidade. O cristão vive dentro da sua situação presente, sempre fiel ao acontecimento e à mensagem que é Jesus Cristo. Permanecer fiel, dentro do presente, a essa herança histórica exige, certamente, que o crente veja futuro nessa herança, em cada momento da sua vida; ou seja, exige que veja o presente como uma esperança”.
Fé e culturas
Pelo que ficou dito até aqui, compreende-se perfeitamente que a fé só possa ser realmente vivida na diversidade dos espaços, dos tempos e das características de cada cultura, como horizonte em que se articula a compreensão do mundo em que se movimenta cada sujeito humano. De fato, se a fé é um ato da liberdade do sujeito, que responde e corresponde à interpelação de uma verdade que o antecede, o exercício da liberdade de cada ser humano nunca é subjetivo, em sentido absoluto, mas sempre mergulhado nos dinamismos das relações humanas, a que genericamente chamamos cultura. E porque esses dinamismos criam circunstâncias únicas e diferenciadas, a cultura não existe como um todo único universal, mas sob a forma plural de contextos culturais. É nesses contextos culturais que os sujeitos são o que são, enraizando neles a sua identidade. Por isso, a liberdade que responde, na fé, é sempre uma liberdade situada culturalmente.
Isso não significa que seja cada contexto cultural a determinar a verdade da fé. Estabelece-se, isso sim, uma espécie de circularidade entre essa verdade – sempre transcendente às culturas, mas nelas articulável e já articulada – e a diversidade cultural em que vivem os humanos. A essa complexa relação entre fé e culturas chamamos, genericamente, inculturação da fé. Na realidade, a fé não existe em “estado puro”, como se fosse uma realidade em si, não articulada culturalmente. E isso em nenhuma fase da história do cristianismo, sendo os próprios textos do Novo Testamento já efeito de uma inculturação da fé em Jesus Cristo, tal como vivida pelos Seus discípulos e pelos primeiros cristãos. Segundo a clarividente afirmação do teólogo dominicano francês Claude Geffré, “seria ilusório projetar na origem do cristianismo uma mensagem quimicamente pura que se iria inculturando progressivamente em culturas diferentes”. Ou então, nos termos de Andrés Tornos, estudioso do fenómeno da inculturação:
“Seria ilusão vã, neste sentido, que um crente pretendesse hoje evangelizar outra cultura utilizando uma forma de discurso livre de todas as limitações da sua perspectiva cultural, elevada acima desta e dos seus interlocutores”.
Noutra perspectiva mas precisamente por essa razão, a cultura – sobretudo as culturas que foram historicamente marcadas pela interpelação cristã – não existe sem certa presença da fé. Por isso, a inculturação da fé também pode ser considerada evangelização da cultura.
O dinamismo dessa inculturação é constituído, essencialmente, pelos movimentos, aparentemente antagónicos, de crítica e de acolhimento dos elementos de cada cultura. Por um lado, o cristianismo, porque não é idêntico a nenhuma cultura, implica sempre certo grau de ruptura cultural – a isso podemos chamar atitude profética. Em nenhum contexto cultural pode desaparecer essa “ruptura”. E ela manifesta-se sempre como ruptura do cristianismo com a cultura e da cultura com o cristianismo.
Por outro lado, o cristianismo, porque não é uma realidade desencarnada, não pode prescindir da relação positiva a elementos culturais – a isso chamaremos atitude sacerdotal. Se esta não existisse, a fé cristã seria mera ideia gnóstica, sem pertinência pragmática – nem salvífica – para seres humanos concretos. A vida de fé acolhe a cultura, porque cada ser humano crente não vive fora de toda e qualquer cultura. Como todos os humanos, o crente é filho de uma cultura, habitando-a por dentro e sendo marcado, na sua identidade, por essa cultura.
Do encontro das duas atitudes – na necessária presença das duas – é que resulta a referida inculturação do cristianismo e cristianização das culturas. Esse encontro, sempre de novo realizado ao longo da história humana, é precisamente a missão da Igreja e de cada crente; essa é a sua razão de ser, na história dos humanos e no projeto salvífico de Deus.
Ora, há momentos da história em que predomina a atitude sacerdotal de acolhimento da cultura envolvente. Nesses momentos parece não haver qualquer ruptura cultural. Mas essas fases aparentemente pacíficas podem ser problemáticas, precisamente por falta de profetismo, podendo conduzir a falsas identificações entre Reino de Deus e realizações humanas de toda a ordem (sobretudo políticas ou económicas).
E há momentos em que predomina a atitude profética. Nessas ocasiões parece haver uma ruptura irreparável. Mas, se esta for total, há problemas de inserção no mundo. E a Igreja transforma-se facilmente numa seita de escolhidos e separados do mundo, que se pretendem salvar no meio de uma humanidade que se afunda.
Cultura contemporânea
Dos complexos dinamismos da cultura contemporânea – e refiro-me aos modos de existência que nos marcam, a nós ocidentais, especialmente europeus, nos inícios do século XXI – recolho alguns que me parecem se importantes, como desafios ao processo de inculturação contemporânea da fé.
- Um elemento especificador da atual situação cultural, sobretudo marcante no Ocidente ou no denominado primeiro mundo, mas alastrando claramente a todo o planeta, é a atual expansão da denominada “cultura global”, com todas as suas ambiguidades. É claro que o alargamento dos horizontes culturais ao planeta inteiro parece favorecer a dimensão universal da fé, ajudando a superar os tribalismos demasiado estreitos de comunidades e grupos fechados sobre si mesmos. O conhecido iniciador da nova teologia política, Johann Baptist Metz, fala, a esse propósito, do perigo do que ele denomina «síndroma de uma consciência aldeã romântica» que apenas prolonga, em pequenos grupos fechados sobre si mesmos, a privatização completa do cristianismo. A abertura a horizontes planetários possibilitaria a superação dessa forma de privatização, abrindo o coração de todos os cristãos aos problemas de todos os humanos.
Mas essa abertura é suficientemente ambígua, tal como o processo de globalização. Economicamente, como sabemos, esse processo é mais excludente do que integrante de muitos humanos, de tal modo que origina modos específicos de injustiça e marginalização. Do ponto de vista cultural, poderia ser benéfico levar em consideração a análise do sociólogo francês Alain Touraine. Para ele, os mecanismos da atual globalização cultural – que são sobretudo mecanismos de consumo e mecanismos mediáticos – têm o efeito de separar a dimensão instrumental da dimensão simbólica, na existência de cada ser humano.
Essa separação dá-se, precisamente, porque o processo de globalização apenas se orienta para a dimensão instrumental, aquela que determina as nossas atividades funcionais quotidianas. Nesse nível, somos cada vez mais todos iguais a todos. Mas essa igualdade tem grandes dificuldades em conseguir preencher o imaginário simbólico dos nossos contemporâneos – para o que não basta o imaginário da moda. É que esse imaginário parece implicar relações mais profundas a valores identificadores, não podendo isso ser construído sem originar grandes diferenças culturais. Ou seja, relativamente aos valores culturais que marcam a profunda identidade de cada ser humano, afirma-se mais claramente a distinção entre nós do que a identificação. Assim, a atual “globalização” cultural não consegue originar, verdadeiramente, uma cultura global. E como separa o instrumental do simbólico, parece favorecer, cada vez mais, o tribalismo cultural, como recurso dos nossos contemporâneos para afirmarem a identidade cultural, perante a invasão incaracterística de uma globalização que é de todos, à custa de não ser de ninguém.
Ora, a inculturação da fé não se orienta apenas para os elementos que marcam instrumentalmente os sujeitos, mas, sobretudo para os seus códigos simbólicos. Nesse nível, o processo de globalização, ao tentar uniformizar esses códigos, apenas na superfície, deixa o espaço aberto para a reação tribal, mesmo conflituosa, entre as diversas identidades culturais. Pressupondo a inculturação da fé como certo encontro de culturas, terá de se contar com este elemento dificultador, originado pela globalização. Por um lado, ao assumi-lo como desafio, deverá procurar a salvaguarda legítima e verdadeira da identidade das diferentes culturas, sem as fundir numa cultura pretensamente mundial; por outro lado, terá de trabalhar na superação do tribalismo cultural de grupos, para promover a possibilidade de que culturas realmente diferentes, sem abdicar da sua diferença ou identidade, se possam encontrar para além da luta e do conflito. E isto acontece quer a nível planetário, na relação entre os mais diversos espaços culturais, quer a nível europeu, no interior de cujo espaço se afirma cada vez mais a multiculturalidade, dada a diversidade de proveniências e identificações simbólicas dos seus habitantes. O diálogo entre marcas culturais diferentes, sem que percam a sua identidade e sem que se fechem sobre si mesmas, é um dos mais fortes desafios globais contemporâneos ao permanente processo de inculturação da fé.
- Um outro desafio que se vem manifestando na Europa das últimas décadas – e que poderá ir alastrando por todo o planeta, através dos processos globalizantes – é o que se relaciona com o problema do indiferentismo, como consequência da secularização originada na modernidade europeia. Pelas mais diversificadas razões, tem aumentado o desinteresse dos cidadãos pelo cristianismo, enquanto forma específica de compreender o real e de o viver. Mesmo que muitas das razões que a isso conduziram – como o menosprezo pela atitude religiosa, ou mesmo o combate dessa atitude, em nome da ciência ou da política – sejam hoje menos determinantes, nada leva a crer que esse indiferentismo diminua. Isso dever-se-á, sobretudo, ao modo de vida do mundo dito civilizado, que preenche todos os recantos da existência, satisfazendo desse modo ilusório o quotidiano dos indivíduos, que não pressentem sequer a pertinência da proposta cristã. Para utilizarmos uma pergunta pertinente de Bento XVI:
“Será que, dada a atual abundância de informação, ainda haverá lugar, no quadro das nossas almas, ou, como parece frequentemente acontecer, será que o Evangelho só pode ser escrito completamente na margem”?
A encarnação da fé numa cultura indiferente terá de enfrentar, antes de mais, a grave dificuldade de grande parte das pessoas não se interrogarem, não levantarem questões sobre o sentido, por estarem plenamente satisfeitas com o cómodo ritual do bem-estar conseguido dia-a-dia. Quando muito, as questões graves que os ocupam apenas se relacionam com a crise, a manutenção ou o aumento desse bem-estar, sem horizontes mais vastos. A encarnação da fé cristã nesse horizonte cultural terá de começar pelo alargamento dos próprios horizontes, no interior dos quais a atitude crente possa fazer sentido.
- O problema da “afirmação intensa da individualidade”, como característica saliente da denominada “pós-modernidade”, instaura um outro desafio à inculturação da fé no nosso contexto cultural contemporâneo. Esse desafio exige, do ponto de vista profético, o cuidado para não se cair em mera redução individualistica da vivência da fé, eliminando a possibilidade de distinguir entre real experiência crente e mera projeção de desejos particulares numa pretensa vida de fé. Mas, por outro lado e em atitude de sabedoria, implica também profundas alterações na atitude transmissora da fé das comunidades eclesiais, seja para o seu interior, seja para o seu exterior. Partindo de indicações dadas pelo Conselho das Conferências Episcopais da Europa e da Conferência Episcopal Francesa, poderíamos resumir assim os desafios lançados por esta nova configuração cultural.
Em primeiro lugar, transmitir a fé neste contexto pressupõe que a comunidade eclesial evangelizadora “respeita o querer e o sentir daquele a quem se dirige”; em segundo lugar, “o fato de que a evangelização se dirige à liberdade pessoal, mais do que ao conjunto da sociedade, supõe que a Igreja reconhece o crescimento da afirmação individual da pessoa”; em terceiro lugar, “se a pessoa a quem se dirige a evangelização é sobretudo considerada como um interlocutor, com o qual é necessário dialogar, isso significa que a Igreja não pretende ser única possuidora da verdade”; em quarto lugar, “a preocupação com a credibilidade social da Igreja revela a consciência de um possível desajustamento entre o que propõe e aquilo que move realmente as pessoas e as sociedades de hoje”.
É claro que este desafio não significa, automaticamente, que a transmissão da fé e a sua inculturação devam seguir, simplesmente, as indicações de uma moda social. A sua dimensão profética implicará sempre questionar se aquilo que move as pessoas e as sociedades é suscetível de ser acolhido como positivo. Mas, mesmo que seja digno de ser criticado e transformado, de modo algum pode ser ignorado, sob pena de que toda a tarefa transmissora seja completamente inglória, porque se dirige a quem, na realidade, já não existe.
- Mas as marcas da nossa cultura não são apenas de individualismo total. Esse individualismo origina, de forma aparentemente paradoxal, o refúgio de muitos dos nossos contemporâneos em grupos sectários, massificados e, normalmente, destruidores da autonomia e liberdade pessoais. Daí a proliferação de grupos “religiosos” ou pseudorreligiosos, assim como do relativismo cultural resultante de tudo isso. Esse é outro dos maiores desafios à (nova) inculturação da fé cristã da Europa. Ainda segundo Claude Geffré,
“o desafio atual para uma abertura à Palavra de Deus, não é em primeiro lugar o ateísmo, a indiferença religiosa ou o anticlericalismo, mas sim uma mentalidade plural, culturalmente e religiosamente, sob o signo da incerteza e de um respeito cioso da diversidade de opções religiosas, éticas, sociais e políticas. Estamos em presença – poder-se-ia dizer da ideologia do pluralismo, na sua distinção em relação ao que poderia ser uma pluralidade legítima. Sob pretexto de respeitar a autenticidade de cada um, todas as opiniões são válidas e surge a tentação de relativizar toda a norma e toda a hierarquia de valores”.
Como se vê, os desafios culturais contemporâneos à inculturação da fé não se prendem apenas com a secularização e o indiferentismo religioso. Estranhamente, parece que o problema da secularização foi substituído pelo problema de uma sacralização descontrolada. A inculturação da fé terá de, nesse sentido, desenvolver um cuidadoso processo de discernimento dos elementos positivos que esse famoso “regresso do religioso” possa apresentar, mas também dos perigos que a sua ambiguidade levanta, sobretudo quanto à manipulação das pessoas e à idolatrização de mecanismos pretensamente salvíficos.
- Se quiséssemos levar ao extremo o desafio cultural do mundo dito “civilizado”, poderíamos resumi-lo numa espécie de “religião” do consumo e do imediatismo, como contraponto ocidental ao cristianismo. Do ponto de vista económico, esses sistemas hoje determinantes – sobretudo segundo o esquema do condicionamento publicitário da liberdade pessoal – resultam tendencialmente em anulação da dimensão pessoal; do ponto de vista cultural, a redução do real aos esquemas determinados por esses sistemas resulta na construção de relações virtuais, que anulam igualmente a dimensão pessoal, enquanto dimensão corpórea do ser humano. Segundo o diagnóstico do filósofo espanhol Miguel Garcia-Baró: no nosso contexto cultural
“o mais claro não é a miséria material (a fome, as epidemias), mas sim a eficacíssima negação do ser pessoal de cada indivíduo humano … [que se cumpre no facto de] que por fim todas a relações inter-humanas se esvaziem no molde das relações econômicas”.
Estas, por seu turno, são relações construídas virtualmente num sistema que funciona por si mesmo, sem contar com as pessoas que o constituem.
- Tendo em conta todos os elementos anteriormente referidos, atrevo-me a indicar alguns aspetos, relativamente aos quais a inculturação da fé terá de se manter inalteravelmente devedora, sob pena de se tornar infiel ao seu conteúdo, a reinterpretar. É certo que cada contexto cultural levanta desafios diferentes e que desses desafios resultarão formas diferentes de inculturação da fé. Mas também é certo que determinados elementos fundamentais não podem ser deixados ao relativismo das culturas, caso contrário essa inculturação seria completamente aleatória e, na realidade, supérflua, pois o Evangelho nada traria de próprio, a não ser fazer-se eco do que cada cultura já possui.
O elemento mais fundamental, no processo da inculturação da fé, é a manutenção ou a construção de uma atitude de respeito pela liberdade pessoal (mantendo a noção de ser-pessoa para além do individualismo ou do coletivismo, como duas faces da mesma moeda que é a impessoalidade) e pela sua capacidade de reconhecer criticamente o sentido. No contexto da cultura contemporânea, isso poder-se-ia formular do seguinte modo:
“Qualquer recuperação ou cura parcial do sentido do mundo partilhado, do contexto cultural de hoje, passa pelo despertar da idiotice ambiental, cada vez mais espessa e talvez mais desejada e mesmo mais trabalhada consciente e tecnicamente”.
No contexto das reduções do ser humano à virtualidade das relações de mercado ou da construção do homo videns como elaboração virtual de um ser humano desencarnado da vida real quotidiana, devemos esperar da inculturação da fé cristã o trabalho perseverante na construção do “homem integral”, que saiba assumir toda a sua realidade de ser finito, relacionado com todos os outros seres finitos e com a sua origem, no interior de uma história particular, à qual não se pode fugir sem falsificar a verdade daquilo que se é. A vivência do ser humano como animal symbolicum, que nem é simplesmente matéria nem simplesmente espírito, seria uma das urgentes tarefas da evangelização da cultura atual.
Esta atitude de percepção da verdadeira realidade humana é condição fundamental para uma realista relação ao nosso mundo, que por sua vez é condição primordial de uma salvação que não se processa por fugas ilusórias da realidade. Só com base nisso o cristão é capaz de escutar a voz dos sem-voz e, como consequência, de se tornar a voz desses sem-voz, assumindo assim a missão de se solidarizar com toda a humanidade, sobretudo com os mais desprezados e esquecidos. Esse será um critério permanente para o discernimento da correta inculturação da fé, seja em que contexto cultural for.
Autor:
Secretaria Nacional da Pastoral da Cultura
João Evangelista Pimentel Lavrador – Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, bispo de Angra – PORTUGAL