O desafio do viver em Comunidade
Ensino do ENF/RCC- 2016
Por: Tácito Coutinho – Tatá
1. Considerações iniciais
Viver em comunidade, sonho, utopia, Babel, Jerusalém! Do início ao fim das Escrituras, o sonho aparece e todas as vicissitudes também. A obra proposta nos parece impossível! Mas é possível a Deus: “Ele mesmo nos prepara uma cidade”. O próprio Deus aquele que constrói a casa sobre a rocha, com o exemplo dos patriarcas Noé e Abraão. Arca, tenda, cidade fundada sobre rocha, são todas imagens do grande sonho da humanidade, colocado por Deus em seu coração. O grande desafio é o poder habitarem juntos, uns com os outros, nas diferenças que, não dividem, mas enriquecem. Só a fé pode iluminar as relações entre os homens, porque faz com que nasçam do amor e sigam a dinâmica do amor de Deus. “O Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável”. É o que afirma o magistério da Igreja.
“Ao apresentar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta aos Hebreus põe em relevo um aspecto essencial da sua fé; esta não se apresenta apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde os homens possam habitar uns com os outros. O primeiro construtor é Noé, que, na arca, consegue salvar a sua família (cf. Heb 11, 7). Depois aparece Abraão, de quem se diz que, pela fé, habitara em tendas, esperando a cidade de alicerces firmes (cf. Heb 11, 9-10). Vemos assim surgir, relacionada com a fé, uma nova fiabilidade, uma nova solidez, que só Deus pode dar. Se o homem de fé assenta sobre o Deus-Amém, o Deus fiel (cf. Is 65, 16), tornando-se assim firme, ele mesmo, podemos acrescentar que a firmeza da fé se refere também à cidade que Deus está a preparar para o homem. A fé revela quão firmes podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no meio deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do crente; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável”. – Encíclica Lumen Fidei, n. 50.
A inspiração é a comunidade de Jerusalém, ao mesmo tempo testemunho e promessa, descrita nos Atos dos Apóstolos É um sonho possível.
A utopia dos Atos é colocada duas vezes em síntese por Lucas, ao descrever a primeira comunidade de Jerusalém. A Comunidade Primitiva é composta por pessoas bem concretas, sujeitas a todo tipo de provação, pessoas que devem ser treinadas a remar contra a corrente do “mundanismo”, ameaça constante. Mas a fé e o zelo conduzirão pessoas frágeis a Deus e a vida eterna, desde que nada se anteponha ao amor de Cristo, a pedra angular da construção deste reino, desta casa.
Viver em comunidade é forma cristã de viver em sociedade. É nossa forma de estar no mundo e ela é um dom. Sabemos também que o que somos, devemos em grande parte aos outros. Ameaças, riscos, desafios colocam em risco a vivência cotidiana dos valores evangélicos. Procuremos detectá-los, identificá-los melhor. Eles surgem nos corações humanos, do afã de poder, de ter, dos desejos desordenados, mais viscerais, menos visíveis. São como “feras”! Feras a serem desmascaradas, especialmente quando as chamamos pelo nome. Estas feras podem agir em uma comunidade, ameaçando a Boa Nova, a acolhida da própria fragilidade, da pertença a uma família humana, da solidariedade com os outros, nossos semelhantes, da fé no Deus da vida.
2. Os desafios à vida em Comunidade
Para melhor compreender os caminhos da construção do viver em comunidade, vamos contemplar os dois primeiros capítulos do livro do Apocalipse, as mensagens às Sete Igrejas, comunidades nascentes que correm riscos e são exortadas.
Vou tomar como referência um texto “Ameaça e Risco: como humanizar nossas comunidades”, de autor desconhecido, publicado, em 2014, na Revista CONFERRE, Chile, citado pela irmã Vera Lúcia P. Horta no CIMBRA –JOVEM
a) Igreja de Éfeso: o envelhecimento – o “abandono do primeiro amor”.
Trata-se de um envelhecimento que nada tem a ver com a idade, mas sim com a falta de raízes fundantes! E muito mais um cansaço, que apaga a esperança de fazer novas todas as coisas, do jeito de Deus. É o “Já sei!”, a “mesmice”! Isto não quer dizer que esta seja uma comunidade que não faça nada! Nem que seja um grupo esclerosado, passivo. “ Conheço tuas obras, teu esforço e tua perseverança” – Ap 2,2.
Qual a exortação? Diz o texto: “Tenho contra ti que abandonastes teu primeiro amor”- Ap 2,4. Amor que é a raiz fundante e que sustenta a vida inteira. O problema de Éfeso é “secundarizar” – colocar em segundo lugar – o amor a Deus. Ou ainda, transformar o amor numa atitude intimista, afastada da realidade, sem compromisso com o outro.
O Anjo diz que é necessário “recordar de onde” caímos – Ap. 2,5. Voltar ao primeiro amor, ao fundamento, acolher de novo a vocação à vida, abrir-se ao movimento do Espírito. Para que isto aconteça, é preciso “Arrepender-se”- Ap 2,5, para voltar a dizer com todo vigor: “Aqui estou!” Quando uma comunidade volta ao primeiro amor, ela recebe a promessa de “poder comer da árvore da vida que está no Paraíso de Deus!”- Ap 2,7.
b) Igreja de Esmirna: o sofrimento
“Conheço tua tribulação e tua pobreza, ainda que sejas rica… não tenhas medo do que vais padecer”-Ap 2,9. O sofrimento, inevitável devido a nossas fragilidades, vulnerabilidades, terá ele algum valor aos olhos de Deus? Em geral, somos conscientes do que sofremos, mas nem sempre do quanto podemos fazer outros sofrerem. Por vezes fechamo-nos no horizonte de nossos sofrimentos, esquecemo-nos de olhar para fora e ver o que tantas pessoas e comunidades de fé sofrem neste momento.
Uma ameaça de nossa vida comunitária é de nos fecharmos em nossas dificuldades cotidianas e vivermos um vitimismo. Nossas velhas feridas podem dominar o ambiente num círculo vicioso, que torna o ar pesado, ao desenvolver uma atitude contraditória de muita complacência conosco e intolerância para com os demais. Podemos buscar a Deus dentro deste emaranhado de sentimentos contraditórios e distanciarmo-nos Dele – não chegar a perceber o qual o verdadeiro sacrifício que agrada a Deus – a liturgia da Quaresma vai gritar sobre isto com o profeta Isaías- Is. 58,5. Trata-se de uma hostilidade interna que freia o anúncio da Boa Nova e impede a abertura ao Espírito.
Como reverter esta situação? Perguntando como Jesus a Maria Madalena: ”Por que choras?”- Jo 20,15. Olhar ao redor e relativizar nossas dores. O mesmo Senhor que nos pergunta: “Por que choras?”- vem nos animar e dizer: “Não tenhas medo!”- Ap 2,10. Ele pode transformar o sofrimento em vida e a Cruz em Ressurreição. Mostrar que o compromisso carrega em si o sofrimento, as dores do parto! Cada um de nós poderia citar aqui vários exemplos de como momentos difíceis tornaram-se fonte de vida. “Sê fiel até a morte!”- Ap 2,11- “Ainda não chegaste ao sangue na vossa luta contra o pecado”- Hb 12,2- são textos inspiradores para compreendermos o sentido e a direção do sofrimento na imitação do Cristo que abraçou sua cruz para nos dar a vida. “Sê fiel até a morte!” e “receberás a coroa da vida”- Ap 2,10.
c) A igreja de Pérgamo: a contaminação
Vivemos hoje os desequilíbrios de um mundo dominado por contra-valores, um sistema de organização que exclui a tantos da vida em plenitude. O Papa Francisco tem alertado com vigor sobre esta situação, bem como sobre o mundanismo que pode corroer a Igreja por dentro. Podemos entrar no jogo da competitividade e nos acostumarmos com o desequilíbrio de nossa sociedade.
É a situação da Igreja de Pérgamo que vive mergulhada em um ambiente pagão. O anjo alerta esta Igreja sobre o perigo de pactuar com a situação vigente- Ap 2, 14. A ameaça também é prestar culto a Deus e aos ídolos, servir a dois senhores e assim não sermos fiéis ao Evangelho. Nesta situação, o anjo adverte a Igreja de Pérgamo: “Arrepende-te”- Ap2, 16.
Os passos para evitar a contaminação podem ser especialmente dois: o reforço de nossa identidade e a inculturação. Compreendamos bem que esta inculturação não significa assimilar a cultura reinante ou sermos por ela assimilados. Trata-se de reforçar nossa identidade cristã neste local onde Deus nos colocou, Sem deixar de denunciar o que aí se opõe ao plano de Deus. Há hoje uma nova sarça ardente de onde Deus nos convoca, revela-se presente, e de onde clama que ouve o grito de seu povo. O Santo Padre tem sido porta-voz das multidões hoje sem voz e sem a dignidade merecida por uma pessoa humana. Podemos nos perguntar: estamos diante da sarça ardente que dia e noite ilumina nossos caminhos comunitários?
Para não nos perdermos e não sermos agarrados pelos “tentáculos” envolventes da pós-modernidade, precisamos reforçar nossa identidade, saber quem somos e a razão de nossa existência. Conhecer nossas raízes cristãs com mais profundidade. Beber de nossos pais, todos os que nos precederam deste caminho e ver como atravessaram cada um seu tempo, mantendo-se firmes na vocação a que foram e, hoje, somos nós chamados. Contemplar como dialogaram com seu tempo, as respostas que deram.
Seguir o Senhor Jesus, o Filho de Deus, em seu caminho de Servo de Javé, aquele que atua sem entrar no jogo do poder, que não se contamina com as tentações que enfrentou. Para segui-lo, será preciso escolher cada dia o caminho do serviço, da partilha em comunidade.
d) A Igreja de Tiatira: a permissividade
A permissividade entra na comunidade de maneira despercebida e se instala. Vem disfarçada.
O anjo diz à Igreja de Tiatira: “Conheço as tuas obras e o teu amor, tua fé e teu serviço…” Ap 2,19.Mas, para esta comunidade serviçal, o anjo guarda uma reprovação que é a de permitir que a falsa profetiza, Jezabel, ensine e engano aos meus servos- Ap 2, 20. A permissividade consiste em permitir esta atividade de poder e dominação. Fala de limites não definidos, falta de critérios inconsistentes. Embora haja questionamentos, a busca que prevalece é a do conforto, bem estar, sobrevivência, mesmo que sob a capa da fé, do amor, do serviço e da perseverança. Jezabel simboliza a perversão, sedução, sincretismo entre o religioso e o pagão, disfarçada em oráculo divino. Essa situação induz ao erro.
Podemos entrar em uma situação como esta, quando nosso pensar comunitário é fraco, quando falta formação e o exercício da reflexão. A comunidade entra em uma situação de vulnerabilidade ao sopro de qualquer vento de doutrina. Entra-se em uma situação “light” onde o que vale é o que me agrada e não mais o que me ajuda a seguir em profundidade o Senhor.
Para sanar a permissividade, o anjo da Igreja de Tiatira não lhe pede conversão, mas sim que mantenha o que tem e robusteça sua fé, obras, amor, perseverança, crendo neles como dom e defendo-os como uma loba a seus filhotes! Que marque melhor seus limites, a partir de Deus, e exerça a difícil arte do discernimento. Nossas comunidades devem formar-se continuamente para tomar decisões através de uma formação que lhes permita refletir sobre seu próprio ser e agir, vida e missão. Um grupo comunitário cresce quando é capaz de se confrontar com os problemas que encontra.
e) A Igreja de Sardes: falta de unidade.
A Igreja de Sardes era formada por vários grupos, mas não existia uma unidade. O risco é cada grupo diferente puxar em uma direção. Isso divide o corpo e gera uma pertença pouco clara e dilui o projeto comum. Podem existir nela membros bons, positivos, mas que não chegam a vivificar o corpo. O anjo diz a Igreja de Sardes: “Tens nome como se estivesse vivo, mas estás morto… pois não encontrei tuas obras perfeitas diante de Deus” Ap. 3,1-2.
A questão aqui é a unidade ameaçada. O modo de sair desta situação é questionar-se: Encontrar a identidade da comunidade. Voltar à vocação, ao carisma fundante e a missão. O chamado de Deus através da Igreja hoje é o de sermos especialistas em humanidade e fraternidade.
Nossas comunidades, pelo seu modo de ser, são chamadas a contestar a mentalidade mundana do pensar só em si. A fraternidade é o melhor dom que podemos entregar ao mundo. O antídoto do individualismo. Isto porque carregamos em nós a semente do Reino que germina! Nesta perspectiva o projeto comunitário é o mais importante. O retomar a identidade. Voltar às fontes
f) A igreja de Fildélfia: a insignicância.
Muitas comunidades hoje experimentam uma mudança de situação. A comunidade cristã é pouco relevantre e constitui-se um grupo social, pequeno, sem privilégios, por vezes até medroso, muitas vezes fechado em si mesmo e seus interesses internos
Em que consiste a ameaça? Em espiritualizar a insignificância, que oculta medos, invejas, pouca formação e visão equivocada da fé. Não seria isto o que o Papa Francisco tem denunciado com vigor e constitui uma ameaça para a Igreja hoje? A Igreja mudou de posição no mundo e nós também, com nossas comunidades. Como chegar a ser fermento na massa, ter algum peso na sociedade?
Lembra a situação da igreja de Filadélfia da qual se diz ser um grupo com muito pouco poder, que sofre a hostilidade ambiental por parte dos que a rodeiam- cf Ap. 3,7ss.
Insignificância não é o mesmo que falta de significado. Podemos ser insignificantes, mas sermos significativos. Lembremos a longa fila de pessoas humildes, pequenas, “insignificantes” da Sagrada Escritura, e que foram de peso na História da Salvação: os israelitas e o Egito, Davi e Golias, Judith, Ester, Ruth… entre outras. É um Resto de Israel, secreto, anônimo, povo pequeno, mas diferente, fiel ao seu Deus e à Aliança. E esta fidelidade é que o faz forte, É um resto germinal! Princípio e origem de algo novo. Significativo. Podemos ser aos olhos do mundo presenças “insignificantes” nas quais o Espírito de Deus pode manifestar sua força. E ressoam para nos as palavras do anjo à igreja de Filadélfia: “Já sei que teu poder é pequeno… mas abri uma porta diante de ti que ninguém pode fechar”- Ap 3,8: a porta da Vida!
g) A Igreja de Laodicéia: a mediocridade.
Esta ameaça aparece quando as comunidades se tornam medíocres, cheias de medo, quando não se cultiva mais o que dá sentido à vida. É como uma canoa que vai ao sabor da correnteza. Podemos sofrer deste mal quando não chegamos à medida plena que podemos dar, em todos os sentidos de nossa vida comunitária. Ficamos sempre no meio do caminho… É o que os antigos chamavam da grande ameaça da acédia, ou tristeza espiritual.
Assim é a Igreja de Laodicéa, da qual o Senhor disse: “Conheço tuas obras e não és nem frio nem quente! Oxalá fosses frio ou quente! Mas só és morno… por isto vou vomitar-te de minha boca”. – Ap 3, 15-16.
A transformação do ambiente medíocre se dá quando a experiência de Deus na vida torna-se apaixonante, vigorosa, quando pé presença do Espírito de Deus em seus seguidores. Um espírito que nos habite no mais profundo e que se comunica por palavras ou no silêncio. Como escrevia Thomas Merton: “o santo prega, andando, sentando-se, levantando-se”… Todos os nossos gestos podem se tornar profundamente plenos, a partir da nossa decisão por Deus: “o buscar verdadeiramente a Deus”!
Conclusão
O convite à adoração, como criatura diante do Deus que se revela. Esta atitude dilata o coração, enche de sentido nossa vida e lhe dá significado, sendo uma presença que manifesta o Reino de Deus já entre nós. Esta a grande chave da mudança.
Nesta dinâmica, como as Igrejas dos primeiros momentos, Deus que se fez homem pede que vivifiquemos nossas comunidades. Comunidades vivas, vibrantes, onde o outro não é ameaça, o diferente é integrado, as barreiras são ultrapassadas. Comunidades com entranhas de misericórdia, que refletem o amor infinito de Deus, aquele que acreditou e continua acreditando na melhor de suas obras, a pessoa humana, salva como Povo de Deus, “povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo”- LG 4 imagem do Deus Trindade.