Uma eclesiologia de “communio”

Uma eclesiologia de “communio”
  1. Trindade Santa, o princípio de comunhão.

Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo em comunhão recíproca. Coexistem desde toda a eternidade; ninguém é anterior, nem posterior, nem superior, nem inferior ao outro. Cada Pessoa envolve as outras, todas se interpenetram mutuamente e moram uma nas outras. É a realidade da comunhão trinitária, tão infinita que os Três são, por isso, um só Deus. A unidade divina é comunitária, porque cada Pessoa está em comunhão com as outras duas.

Dizer que Deus é comunhão, significa que as Três Pessoas Eternas, Pai, Filho e Espírito Santo estão voltados uns para os outros. Cada Pessoa Divina sai de si e se entrega às outras duas.

As Pessoas são distintas. O Pai não é o Filho e o Espírito Santo, e assim sucessivamente, não para estarem separadas, mas para poderem se entregar umas às outras e fazer assim comunhão.

No princípio está a comunhão dos Três Únicos. A comunhão é a realidade mais profunda e criadora que existe. É por causa da comunhão que existe o amor, a amizade e a doação entre as pessoas sejam Elas Divinas, sejam elas humanas.

A comunhão da Santíssima Trindade se abre para fora, não está fechada em si mesma.Toda a criação significa um desdobramento de vida e de comunhão das Pessoas Divinas convidando as criaturas para também estarem em comunhão entre si e com a Trindade Santa.

O Evangelho nos revela esta realidade: “Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em Ti. Que eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes dei a glória que tu me deste, para que eles sejam um, como nós somos um: eu neles, e tu em mim, para que sejam perfeitamente unidos, e o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste como amaste a mim.” (João 17,21 – 23) A comunidade cristã tem por fundamento a comunhão da Trindade Santa.

  1. Igreja Sacramento de Cristo

Visto que a Igreja é o sacramento de Cristo (LG 1), é Jesus que, em sua relação com o Pai e com o Espírito, determina a vida e a estrutura interior da Igreja, servindo-lhe de protótipo. Assim como Jesus é constituído Filho de Deus pelo Espírito Santo, pelo poder do Altíssimo que cobre Maria com sua sombra (Lc 1,35), como foi investido em sua função messiânica pelo Espírito que desceu e repousou sobre ele no Jordão, assim, de maneira análoga, a Igreja é constituída pelo Espírito Santo desde sua origem e por ele manifestada publicamente em Pentecostes.

Sendo a Igreja o sacramento de Cristo, ela estende a nós a unção de Cristo pelo Espírito. Não é somente uma extensão da Encarnação. É também a unção de Cristo pelo Espírito em sua concepção e em seu batismo que se estende a todo seu Corpo Místico. Se a ação da Igreja é eficaz, se produz frutos na sua vida sacramental e na sua tarefa de evangelização, se vidas são transformadas, é porque a unção de Cristo pelo Espírito se estende à Igreja. A unidade da Igreja e a comunhão dos fiéis também são decorrências desta unção de Cristo pelo Espírito. O Espírito que assegura a unidade entre Cristo e a Igreja também garante que seja mantida a distinção entre Cristo e a Igreja.

  1. Igreja, koinonia no Espírito.

Na plenitude dos tempos, o Filho, Palavra Eterna do Pai, encarnou-se e nos revelou o Pai e seu amor salvífico. Para continuar com seu povo, reunido na fé em Jesus Cristo, uma Nova Aliança, Deus enviou o Espírito, dom do amor do Pai e do Filho, que reúne e assiste a comunidade, guardando-a na fidelidade e na comunhão com Deus.

A Igreja neste tempo é o lugar do Espírito de Cristo atuante na história. Presente em cada fiel que permanece em Cristo, o Espírito é força e comunhão para a vida da Igreja. O Espírito é dado à comunidade e às pessoas.

São João escreve nos capítulos 14 a 16: “o Pai vos dará outro Paráclito, virá a vós, vos ensinará, vos recordará, enviá-lo-ei a vós, vos anunciará toda verdade”; “vós” significa certamente as pessoas e a comunidade reunida pelo Espírito enviado.

“A Igreja é uma comunhão, uma fraternidade de pessoas; nela se unem então um princípio pessoal e um princípio de unidade comunitária, sendo o Espírito Santo que os harmoniza. A grande riqueza da Igreja são as pessoas. Cada uma delas é um princípio original e autônomo de sensibilidade, de experiências, de relações, de iniciativas”.[1]

O Espírito prepara os homens, antecipa-se a eles por sua graça, para atraí-los a Cristo. Manifesta-lhes o Senhor ressuscitado, lembra-lhes sua palavra, abrindo-lhes o espírito à compreensão de sua Morte e ressurreição. Torna-lhes presente o mistério de Cristo, eminentemente na Eucaristia, a fim de reconciliá-los, de colocá-los em comunhão com Deus, a fim de faze-los produzir “muito fruto”.[2]

O Espírito reúne as pessoas numa comunidade de fé, faz nascer entre elas o amor, no qual são impulsionadas a viver e partilhar fraternalmente, formando a unidade e a comunhão de fiéis em Cristo. É o único Espírito de Cristo que em todos e em cada um gera unidade e comunhão. A cada um e a todos em comunidade foram dadas, no Espírito de Cristo, as condições de realizarem o designo de Deus de dar vida e cooperar na salvação.

O Espírito é dado para realizar a Igreja como comunhão, como testemunha da comunhão de Deus, sendo sinal e antecipação da vida futura, Ele pode ser experimentado na comunidade por cada um, unidos uns aos outros no Novo Povo de Deus, por uma nova condição religiosa das pessoas feitas filhos de Deus e incorporadas a Cristo no Espírito.

  1. Igreja, Comunidade e Fraternidade

Uma das imediatas conseqüências do evento Pentecostes é a vida em comunidade. Impulsionados pela graça do Espírito do Senhor Ressuscitado, os apóstolos passam a anunciar com poder a Boa-Nova do Reino, que tem, nas pequenas comunidades, o campo propício para a “perseverança na doutrina dos apóstolos, as reuniões em comum, a fração do pão e as orações” (cf. At 2, 42). “Unidos de coração freqüentavam todos os dias o templo. Partiam o pão nas casas e tomavam a comida com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e cativando a simpatia de todo o povo. E o Senhor cada dia lhes ajuntava outros, que estavam a caminho da salvação”. (At 2, 46-47)

“Aprouve a Deus santificar e salvar os homens, não individualmente, excluindo toda a relação entre os mesmos, mas formando com eles um povo, que o conhecesse na verdade e o servisse em santidade.” (LG 9). “O apostolado individual é importante para a evangelização, mas ele deve estar integrado na comunidade cristã, que, por sua vez, é missionária e ativa no serviço do Reino de Deus”.[3]

Atualmente, diante da realidade de muitas de nossas paróquias, “caracterizadas por uma baixa prática religiosa e o anonimato dos fiéis, reivindica-se a transformação da paróquia em comunidades de dimensões humanas, possibilitando relações pessoais fraternas”..[4]

Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in America, o Papa João Paulo II, considerando o documento da Conferência de Santo Domingo, afirma-nos que “as paróquias são chamadas a ser acolhedoras e solidárias, lugar da iniciação cristã, da educação e da celebração da fé, abertas à variedade de carismas, serviços e ministérios, organizadas comunitária e responsavelmente, capazes de comprometer os movimentos de apostolados já atuantes…”. Salienta ainda que um meio de renovação paroquial “pode ser encontrado talvez considerando a paróquia como comunidade de comunidades e de movimentos. Por isso, é oportuna a formação de comunidades e de grupos eclesiais de tal dimensão que permitam estabelecer verdadeiras relações humanas”..[5]

“Na sociedade atual, principalmente nas grandes cidades, é cada vez mais difícil para as pessoas encontrarem-se com outras fora de casa, nos horários noturnos, para reuniões e celebrações. Diminui o número dos que freqüentam atividades comunitárias ou assembléias litúrgicas. A facilidade de encontrar programas radiofônicos e televisivos de caráter religioso leva muitas pessoas a dispensarem a ida à igreja, na semana e mesmo aos domingos. É preciso estimular a vida comunitária”[6],sem ignorar o novo contexto.

“Temos uma organização social que acentua o isolamento dos indivíduos, incentiva um comportamento que leva ao egoísmo e coloca as pessoas numa competição estressante. Especialmente nas áreas urbanas, o enfraquecimento da família, a diluição da vida comunitária e a violência acentuam o isolamento e a incerteza, gerando desconfiança e medo nas relações cotidianas dos cidadãos. A modernidade tende a submeter a sociedade ao mercado e ao poder, levando-a a perder muitos valores. A cultura brasileira, todavia, conservou muito desses valores: o sentido da festa, o prazer da convivência, a abertura ao diferente e a mistura de raças e povos… Subsiste, também, em muitos a aspiração a relações comunitárias, comunhão, de fraternidade e de amor mútuo, verdadeiramente humanas e humanizadoras.”[7]

“Renovar a comunidade não significa voltar à comunidade natural ou à comunidade tradicional. Nosso esforço será criar condições para que as pessoas possam viver relações de solidariedade e de fraternidade que permitam sua maior realização, no contexto atual”.[8]

Nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2003 – 2006, entre os desafios de “renovação da comunidade” retoma a “fraternidade como característica essencial da vida cristã”.[9]

O Novo Testamento não usa o termo “fraternidade” em abstrato, mas freqüentemente fala dos discípulos de Jesus como “irmãos”. Porque existe um só Pai de toda a humanidade, todos somos chamados a ser irmãos ou irmãs. Ë irmão aquele que se reconhece como tal, que reconhece a Deus por Pai e aos outros como irmãos e irmãs. Esta fraternidade se baseia no dom do Espírito, que nos faz filhos e filhas no Filho.

A fraternidade cristã é aberta e quer acolher a todos os seres humanos e não faz discriminação. “Deus não faz acepção de pessoas”.62 Todos os povos são chamados a formar a única família de Deus. A fraternidade vai além dos vínculos de sangue ou de raça. Pedro nos diz no livro dos Atos: “Deus me mostrou que homem algum é profano ou impuro”. O fato de sermos peca­dores não elimina a fraternidade. Também os pecadores são irmãos.

A condição de “irmãos” e “irmãs” estende aos discípulos e discípulas de Jesus aquela solidariedade que é comum nas famílias de sangue. De fato, os discípulos colocam em comum seus bens, praticam a comunhão fraterna. Quando as comunidades cristãs se multiplicaram, e não foi possível continuar nos mesmos moldes a experiência de comunhão da primeira comunidade, os cristãos continuaram a se chamar “irmãos” e a praticar a fraternidade. Ela significa busca de unidade entre os irmãos e caridade para com todos os que precisam, inclusive na forma de socorro material. Um testemunho eloqüente nos vem da tradição litúrgica, que está plena de orações pelos irmãos e se constitui, ela própria, num encontro de irmãos. Na história da Igreja, todas as vezes em que se buscaram formas mais elevadas de vida no Evangelho, colocou-se na vida fraterna seu apoio fundamental.

O Concílio Vaticano II reafirma a fraternidade como característica essencial da vida cristã. A Igreja, novo povo de Deus, é descrita como corpo de Cristo, uno na variedade dos membros, os quais todos têm igual dignidade. “É uno o povo eleito de Deus: ‘Um só Senhor, uma só fé, um só batismo’ comum é a dignidade dos membros pela sua regeneração em Cristo, comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição; uma só a salvação, uma só a esperança e a unidade sem divisão”.

A Igreja tem sido palco, nas últimas décadas, de um significativo florescimento de pequenas comunidades, conhecidas por diversos nomes, que se têm revelado como centros de formação cristã e de motivação missionária. Trata-se de grupos de cristãos, a nível familiar ou de ambientes restritos, que se encontram para a oração, a leitura da Sagrada Escritura, a catequese, para a partilha dos problemas humanos e eclesiais, em vista de um compromisso comum. Elas são um sinal da vitalidade da Igreja, instrumento de formação e evangelização, um ponto de partida válido para uma nova sociedade, fundada na “civilização do amor”.

Tais comunidades descentralizam e, simultâneamente, articulam a comunidade paroquial, à qual sempre permanecem unidas; radicam-se em ambientes simples das aldeias, tornando-se fermento de vida cristã, de atenção aos “últimos”, de empenho na transformação da sociedade. O indivíduo cristão faz nelas uma experiência comunitária, onde ele próprio se sente um elemento ativo, estimulado a dar a sua colaboração para proveito de todos. Deste modo, elas tornam-se instrumento de evangelização e de primeiro anúncio, bem como fonte de novos ministérios; enquanto, animadas pela caridade de Cristo, oferecem uma indicação sobre o modo de superar divisões, tribalismos, racismos”..[10]

“De fato, cada comunidade, para ser cristã, deve fundar-se e viver em Cristo, na escuta da Palavra de Deus, na oração onde a Eucaristia ocupa o lugar central, na comunhão expressa pela unidade de coração e de alma, e pela partilha conforme as necessidades dos vários membros (cf. At 2,42-47). Toda a comunidade – recordava Paulo VI – deve viver em unidade com a Igreja particular e universal, na comunhão sincera com os Pastores e o Magistério, empenhada na irradiação missionária e evitando fechar-se em si mesma ou deixar-se instrumentalizar ideologicamente. O Sínodo dos bispos afirmou: ‘Uma vez que a Igreja é comunhão, as novas comunidades de base, se verdadeiramente vivem em unidade com a Igreja, representam uma verdadeira expressão de comunhão e um meio eficaz para construir uma comunhão ainda mais profunda. Por isso, são um motivo de grande esperança para a vida da Igreja’.(Sínodo dos Bispos, 1.985, Redação final,II,C,6 )”.[11]

5. Os ministérios constituem a Igreja

A Igreja se constitui de ministérios e serviços. Portanto, as comunidades eclesiais também se constituem de ministérios e serviços.[12]

O ministério leigo não é derivado do ministério ordenado, mas, sim, do sacerdócio comum, conferido pelos sacramentos da iniciação cristã. Estes fiéis, pelo batismo, foram incorporados a Cristo, constituídos no povo de Deus e, a seu modo, feitos partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo pelo que exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo.[13]

A expressão Povo de Deus indica, em seguida, a Igreja “em sua totalidade”, ou seja, naquilo que é comum a todos os seus membros. Esta foi, sem dúvida, uma das maiores aquisições do Vaticano II e deve fazer valer todo o seu peso quando se trata de refletir sobre a missão da Igreja e ministérios dos cristãos e cristãs leigos. Os cristãos são chamados, como indivíduos, a exercerem o apostolado nas diversas circunstâncias de vida. Lembre-se, no entanto, que o homem é por natureza social e, aprouve a Deus reunir os fiéis em Cristo num povo de Deus e num só corpo. O apostolado de grupo corresponde, assim, satisfatoriamente, à exigência dos fiéis tanto do ponto de vista humano quanto cristão, exprimindo, ao mesmo tempo, o sinal da comunhão e da unidade da Igreja em Cristo.[14]

“A missão salvífica da Igreja no mundo realiza –se, não só pelos ministros, que o são em virtude do sacramento da Ordem, mas também por todos os fiéis leigos: estes, com efeito, por força da sua condição batismal e da sua vocação específica, na medida própria de cada um, participam no múnus sacerdotal, profético e real de Cristo. Por isso, os pastores devem reconhecer e promover os ofícios e as funções dos fiéis leigos, que têm seu fundamento sacramental no Batismo e na Confirmação, bem como, para muitos deles, no matrimônio”.[15]

“A expressão Povo de Deus evoca a variedade de carismas, serviços e ministérios que o Senhor reparte entre os fiéis em vista da vida e da missão da Igreja. Com efeito, a comum incorporação a Cristo e à Igreja – realizada pelos sacramentos de iniciação – é constantemente enriquecida por uma inesgotável pluralidade de carismas, serviços e ministérios”.[16]

Em função de suas necessidades internas, e dos desafios da missão no mundo, a Igreja vai se estruturando e organizando. O Novo Testamento nos mostra esse processo em curso. Ele não oferece um modelo único do modo de se estruturar a Igreja. Mostra, isso sim, diversos exemplos, respondendo às demandas dos diferentes contextos históricos e culturais. Também encontramos no Novo Testamento, informações referentes a épocas distintas. Estes testemunhos são diversificados: nenhum deles pode ser considerado exclusivo e excludente dos demais.[17]

“Dois elementos interrelacionados estão subjacentes a todo este processo: a atuação do Espírito Santo na comunidade dos fiéis (= dimensão do dom transcendente ) e a busca humana das melhores opções (= dimensão do empenho humano ) ‘para aperfeiçoar os santos em vista do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo, até que alcancemos todos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, o estado de homem perfeito à medida da estatura da plenitude de Cristo’ (cf Ef 4,12–13). O exemplo mais claro desta busca ativa e criativa no Espírito está documentado em At 6, 1–6: quando surge o primeiro conflito na comunidade de Jerusalém (At 6,1), são os apóstolos que ‘convocam a assembléia dos discípulos’ (At 6, 2), conduzem o discernimento e indicam uma solução (At 6,2–3), mas é a assembléia que aprova  a proposta dos apóstolos e escolhe os ministros (At 6,4-5) que, uma vez apresentados aos apóstolos, recebem deles a imposição das mãos (At 6,6).[18]

“Alguns textos do Novo Testamento apontam para uma íntima relação entre carisma e serviço / ministério. Os mais conhecidos são: 1 Cor 12,4-11.28–30; Rm 12,4-8; Ef 4,10-13; 1Pd 4,10; 2Tm 1,6. Mais especificamente: ‘Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos. A um, o Espírito dá…’; ‘Tendo, porém, dons diferentes, segundo a graça que nos foi dada,…”  “ É ele que concedeu a uns ser apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros  pastores e mestres…’ ‘Todos vós, conforme o dom que cada um recebeu, consagrai – vos ao serviço uns dos outros, como bons dispenseiros da multiforme graça de Deus’. ‘Eu te exorto a reavivar o dom de Deus que há em ti pela imposição das minhas mãos.’   Pois, Deus não nos deu um espírito de medo, mas espírito de força, de amor e de sobriedade !”.[19]

“Há uma forte tendência, hoje, na teologia e na prática pastoral, de considerar ministério, fundamentalmente, o carisma que assume a forma de serviço à comunidade e à sua missão e que por esta é como tal acolhido e reconhecido”.[20]

“Ministério é, antes de tudo, um carisma, ou seja, um dom do alto, do Pai, pelo Filho, no Espírito, que torna seu portador apto a desempenhar determinadas atividades, serviços e ministérios em ordem à salvação. Numa perspectiva trinitária, é preciso ressaltar aqui a unidade na variedade e a variedade na unidade (1 Cor 12, 4 ss ). Ao falar-se de carismas, não se deveria privilegiar os mais extraordinários e espetaculares, mas os que sustentam a fé e ajudam-na a encarnar-se. Ao lado da capacidade de operar milagres, Paulo recorda o carisma da assistência e do governo da comunidade ( 1 Cor 12,28 ). Diante da tentação de excluir da lista dos carismas os serviços mais humildes e estáveis, Paulo afirma o valor destes serviços, como no corpo humano, onde os membros menos nobres são os que cercamos de maior honra ( 1 Cor12,22-26 ). Não se pode esquecer que a função de Apóstolos – aos quais, de alguma forma, sucedem na Igreja, os ministros ordenados – situa-se também no conjunto dos carismas ( 1Tm 1,6 ; LG 21) e, em Paulo, vem em primeiro lugar ( 1Cor 12,28-29 ; Ef 4,11 ). Na verdade, todos os carismas, serviços e ministérios de que a Igreja é dotada pelo Espírito para cumprir a sua missão, se complementam, cooperam uns com os outros e se integram como os membros de um corpo; no respeito ao princípio de subsidiariedade”.[21]

A exortação Christifideles Laici no seu número 24 ensina a respeito dos carismas: a) são dons e impulsos especiais; b) assumem as mais variadas formas; c) têm uma utilidade eclesial; d) florescem, também, em nossos dias e podem gerar uma afinidade espiritual entre as pessoas; e) devem ser recebidos com gratidão; f) necessitam de discernimento; g) devem estar referidos aos pastores da Igreja.

“Nem todo o carisma, porém, é ministério. Certamente, a dimensão do serviço deve caracterizar todo carisma ( 1Cor 12,7.25; Rm 12,9-21 ), e seu portador deve aspirar ao dom maior, que é o amor ( 1Cor 13,1-14,1a). Mas, só pode ser considerado ministério o carisma que, na comunidade e em vista da missão na Igreja e no mundo, assume a forma de serviço bem determinado, envolvendo um conjunto mais ou menos amplo de funções, que responda a exigências permanentes da comunidade e da missão, seja assumido com estabilidade, comporte verdadeira responsabilidade e seja acolhido e reconhecido pela comunidade eclesial.”[22]

“A recepção ou reconhecimento do ministério pela comunidade eclesial é essencial ao ministério, porque o ministério é uma atuação pública e oficial da Igreja, tornando seu portador, num nível maior ou menor, seu representante. Esta ‘recepção’ ou ‘reconhecimento’ dos ministérios tem modalidades e graus diversos, dependendo da natureza da função, ou seja, da sua relação com a identidade e a missão da Igreja.”[23]

“É preciso recordar outras formas de serviço à vida da Igreja e à missão, e, por conseguinte, outros operadores: animadores da oração, do canto e da liturgia; chefes de comunidades eclesiais de base e de grupos bíblicos; encarregados das obras caritativas; administradores dos bens da Igreja; dirigentes das várias associações de apostolado; professores de religião nas escolas. Todos os fiéis leigos devem oferecer à Igreja uma parte do seu tempo, vivendo, com coerência, a própria fé.” (RM 74)

  1. Igreja Comunidade de Fiéis

O Concílio Vaticano II tornou possível uma nova experiência de Igreja, que volta a se orientar, de forma mais vigorosa, pelas origens bíblico-patrísticas e também quer ao mesmo tempo fazer dá uma resposta à realidade da Igreja em nosso mundo secularizado.

Essa visão eclesial pós-conciliar surge cada vez mais vigorosamente precisamente em Igrejas do assim chamado Terceiro Mundo, sobretudo em “pequenas comunidades eclesiais” Elas mostram claro interesse na experiência de fé da Igreja como “comunidade na fé”.

Para poder realizar melhor a unidade de conteúdo e de forma da Igreja como Comunidade de Fiéis, requer-se ampla participação em todas as funções da vida da Igreja. Todos os fiéis constituem o sujeito social da Igreja: os fiéis que buscam viver esta experiência de Igreja Comunidade não podem mais se satisfazer com o papel de “objeto” de funções ministeriais de direção.

“Como ‘povo de Deus’ peregrino, a Igreja é uma comunidade de irmãs e irmãos que, junto com todos os outros homens ‘de sua graça’ (cf. Lc 2,14), estão a caminho do Reino de Deus prometido. Ser comunidade de esperança a caminho no meio da grande família da humanidade, e com ela — isso faz com que em muitos fiéis a alegria pela Igreja seja sempre mais forte do que o sofrimento causado por ela.”.[24]

O recente crescimento da “Igreja no Terceiro Mundo” nos faz conhecer uma experiência da especial solidariedade com os pobres. “No seguimento do ‘grão de trigo que cai na terra e morre’ (Jo 12,24), as Igrejas, as comunidades e os grupos — muito diversos segundo as regiões — também participam vitalmente (e não só verbalmente) cada vez com mais freqüência da sorte das muitas vítimas de nossas atuais injustiças políticas mundiais e regionais”.[25] Essa maneira de viver a communio faz a Igreja crescer em diversos lugares como “Igreja dos pobres” ou “Igreja com os pobres”, onde os próprios pobres se tornam o sujeito destacado do agir eclesial.

“A nova criação está inicialmente realizada na comunidade da Igreja (cf. Gl 6,15s). Essa nossa Igreja é uma comunidade de esperança. E o memorial do Senhor, no qual celebramos em comum a presença eficaz de sua ação salvadora, “até que ele venha”, deve se tornar de novo para nós e para o mundo em que vivemos recordação perigosa de nossa provisoriedade”.[26]

“A Igreja não é ela mesma o Reino de Deus, mas este “já está presente nela em mistério” (LG 3). Não é em si simples comunidade de reflexão nem alguma associação de interesses voltada para o futuro. Ela se baseia na obra e na fundação de Jesus Cristo; o seu Espírito é o fundamento vivo de sua unidade. Ele, o Espírito do Senhor ressuscitado, é a força mais íntima de nossa confiança: Cristo em nós, esperança da glória (cf. Cl 1,27). Por isso a comunidade de esperança da nossa Igreja não é uma associação que poderia sempre se organizar de maneira nova; ela é na sua forma comunitária um povo, povo peregrino de Deus, que se identifica e se manifesta por narrar sua história como história da salvação de Deus junto aos homens, por celebrar sempre de novo essa história e tentar viver dela”.[27]

“A vitalidade desse povo e das experiências de comunidade nele acumuladas certamente depende da vida dessa esperança. Ninguém espera só para si. Porque a esperança, que confessamos, não é confiança vazia nem otimismo nato com relação à existência; é tão radical e tão pretensiosa que ninguém a poderia esperar só para si e só visando a si próprio. Visando só a nós: neste caso, restar-nos-ia no fim realmente mais que melancolia, desespero mal dissimulado ou cego otimismo egoísta? Ousar esperar o Reino de Deus — ou seja, sempre esperá-lo tendo em vista os outros e neles a nós mesmos. Só quando nossa esperança espera também para os outros, quando ela, portanto, assume inopinadamente a configuração e o movimento do amor e da communio, ela deixa de ser pequena e de espelhar desesperançadamente o nosso egoísmo”.[28]

  1. O leigo na Igreja

Tendo em vista o conceito de Igreja como Comunidade de Fiéis, proposto pelo Concílio Vaticano II, o conceito de “leigo” em seu contraposto “clero”, é uma expressão significativa “para o cisma pastoral de base”, que vigora, desde muito tempo, na Igreja Católica entre a “hierarquia”, o “clero”, os “sacerdotes”, de um lado, e os fiéis “simples”, “o povo”, isto é, “os leigos”, de outro.

Não se poderia evitar esse dilema atribuindo aos “leigos” na Igreja uma caracterização positiva que justificasse esse ajuntamento numa categoria? O Concílio dedicou ao leigo o capitulo 4 da Constituição sobre a Igreja (LG 30-38) e um decreto sobre o apostolado leigo (Apostolicam Actuositatem: AA). O Concílio acentua menos o contraste que a concordância das diversas posições na Igreja, que devem “todas, a seu modo, cooperar unanimemente na obra comum” (LG 30). Também se salienta que tudo o que se fala do povo de Deus no capitulo 2 “vale igualmente para os leigos, religiosos e clérigos” (ib.); “mas aos leigos, homens e mulheres, destinam-se particularmente certas coisas, por motivo de posição e missão” (ib.).

Pelo batismo e pela confirmação, todos os fiéis participam mediante o Espírito santo, o mesmo em Cristo e nos cristãos, do tríplice ofício de Cristo como profeta, sacerdote e pastos (LG 10-12; 34-36); por isso reina entre els “verdadeira igualdade quanto a dignidade e ação comum a todos os fiéis  na edificação do corpo de Cristo” (LG 32).

O Concílio compreende por leigos “todos os cristãos, exceto os membros de ordem sacra e do estado religioso aprovado na Igreja. Estes fiéis, pelo batismo, foram incorporados a Cristo, constituídos no povo de Deus e a seu modo feitos partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, pelo que exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo” (LG 31). Mas em que consiste sua maneira especial de ser-cristão e assim, de participação no tríplice ofício de Cristo?

O Concílio Vaticano II explica:

“A índole secular caracteriza especialmente os leigos… É específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em todos e em cada um dos ofícios e trabalhos do mundo. Vivem nas condições ordinárias de vida familiar e social, pelas quais sua existência é como que tecida. Lá são chamados por Deus para que, exercendo seu próprio ofício guiados pelo espírito evangélico, a modo de fermentar de dentro, contribuam para a santificação do mundo. E assim manifestam Cristo aos outros, especialmente pelo testemunho de sua vida resplandecente em fé, esperança e caridade”.[29]

O Concílio frisa que todos os cristãos, pelo batismo e confirmação, são igualmente sujeitos ativos e representantes do povo de Deus, da Igreja e de sua missão (cf. LG 33), de tal sorte que também os leigos cumprem sua vocação como cristãos co-responsavelmente na Igreja e não só nos campos da vida “secular” distintos da Igreja; “os leigos, ao realizarem essa missão da Igreja, exercem o apostolado tanto na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na temporal” (AA 5; cf. também AA 2,9s). E, finalmente, pela teologia da Igreja Comunidade e do povo de Deus, ambos determinantes para a imagem de Igreja do Concílio Vaticano II, coloca-se de tal modo em primeiro plano o fundamental ter-em-comum entre todos os cristãos, que reduz consideravelmente uma diferenciação em “posições” claramente distintas entre si, se é que até mesmo não supera inteiramente.

No capítulo II, “Novos desafios no início do Novo Milênio”, do documento nº 71 da CNBB, a Igreja no Brasil afirma ser necessária “uma avaliação da qualidade de nossa presença junto ao povo, como exigência da própria missão de evangelizar. A organização da Igreja Católica está muito dependente do padre e da paróquia”. O número de padres não tem crescido suficiente para atender a demanda pastoral. Percebemos que diante das “mudanças sócio-culturais” as estruturas pastorais atuais se mostram insuficientes e o atendimento e acolhida dos fiéis deficitária. “A vocação apostólica dos leigos e leigas, bem como sua formação, e novas formas de organização da vida eclesial no mundo urbano e nas áreas mais marcadas pela mobilidade humana devem ser mais incentivadas”.[30]

“A ação dos leigos é indispensável para que a Igreja possa ser considerada realmente constituída, viva e operante em todos seus setores, tornando-se plenamente sinal da presença de Cristo entre os homens”.[31]

[1] CONGAR, Yves, Creio no Espírito Santo, volume 2, Editora  Brescia, 1982

[2] Catecismo da Igreja Católica nº 737

[3] CNBB Documento 62, “Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas”, nº 95 .

[4] CNBB Documento 54, “DGAE 1995 – 1998”, nº 280

[5] João Paulo II, “Ecclesia in América” nº 41

[6] CNBB, Documento nº 71, “DGAE 2003 –2006”, nº 111

[7] CNBB, Documento nº 71, “DGAE 2003 – 2006”, nº 112

[8] Idem, nº 113

[9] CNBB, Documento nº 71, “DGAE2003 – 2006”, nºs114 a 117

[10] João Paulo II, “Recemptoris Missio”, nº 51

[11] idem

[12] Paulo VI, “Evangelii Nuntiandi” nº 73 e CNBB Documento 62 nº 87

[13] Vaticano II, “Lumen Gentium” nº 31; CNBB Documento 62 nºs 72 a 75

[14] .Vaticano II, “Apostolicam Actuositatem” nº 18 e CNBB Documento 62 nº 69.

[15] João Paulo II, “Christifideles Laici” nº 23.

[16]  CNBB Documento 62 nº 79).

[17] CNBB Documento 62 nº80

[18] Idem nº 81

[19] Idem nº 81

[20] Idem nº 83

[21] Idem nº 84

[22] CNBB Documento 62 nº 85

[23] CNBB Documento 62 nº 86

[24] KERHL, Medard sj – “A Igreja, uma eclesiologia católica”, Edições Loyola, 1997

[25] Idem

[26] Sínodo dos Bispos da Alemanha, Friburgo, 1976, citado por Khel, Medard sj em obra citada acima

[27] Sínodo dos Bispos da Alemanha, Friburgo, 1976, citado por Khel, Medard sj em obra citada acima.

[28] Idem

[29] Vaticano II, “Lumen Gentium” nº 31.

[30] CNBB, documento nº 71, Diretrizes Gerais para a evangelização da Igreja no Brasil, 2003 – 2006, nº 61

[31] João Paulo II, “Palavra de João Paulo II aos bispos do Brasil”, Edições Paulinas, 2003 – citado no Documento 71 – CNBB nº 104

 

Autor: Tácito Coutinho – Tatá – Moderador do Conselho da Comunidade Javé Nissi

Comunidade Javé Nissi

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