RCC – Desafio Pastoral e Teológico

RCC – Desafio Pastoral e Teológico

Dom Paul Josef Cordes dizia que a “Renovação Carismática tem sido descrita como descoberta empírica do poder do Espírito Santo na Igreja e em seus membros, o que exige reflexões teológicas e pastorais, para que a Renovação permaneça viva no coração da Igreja”. “Devemos reconhecer – dizia ele – que essa profunda percepção do relacionamento pessoal a que a Renovação chama batismo no Espírito Santo, ou, derramamento do Espírito Santo, não faz parte de nenhum movimento em particular, mas da Igreja, que celebra os sacramentos da iniciação”.[1]

No entanto, devemos admitir que, essa percepção que acontece de forma praticamente aleatória na vida do povo de Deus de um modo geral, é tida na RCC  como  uma  realidade  normativa,   um  objetivo  a  ser alcançado,  um acontecimento que “se espera que aconteça”. Vejamos duas citações magisteriais:

“A cristologia, e especialmente â eclesiologia do Concílio, deve seguir-se um estudo renovado e um culto renovado do Espírito Santo, precisamente como complemento indispensável do ensino conciliar” (Paulo VI, na Audiência Geral de 6/6/1973).

E João Paulo II, na Encíclica Dominum et Vivificantum, dizia:

“A Igreja (…) proclamou, desde o início, a sua fé no Espírito Santo. (…) Esta fé, proferida ininterruptamente pela Igreja, precisa ser incessantemente reavivada e aprofundada na consciência do Povo de Deus” (n° 1 e 2).

Quem, na Igreja, em sua práxis, de maneira contínua e sistematizada, propõe a realização disso? A RCC, sem dúvida…

“A Renovação Carismática Católica tem ajudado muitos cristãos a redescobrir a presença e o poder do Espírito Santo em suas vidas, na vida da Igreja Católica e do mundo”, dizia João Paulo II aos membros do Conselho do ICCRS, em 1979…(e repetiu isso por diversas outras vezes!)

Mas, diria eu, esse apostolado de Pentecostes, a RCC o tem realizado de forma um tanto quanto isolada, e sob perceptível e adversa pressão.

Não tem sido fácil encaixar essa  que, para a Renovação Carismática, é uma essencial experiência, na “normalidade doutrinária da Igreja”. A RCC não tem o apoio explícito da Igreja na questão do enunciado do batismo no Espírito Santo. Parece assim, falando-se em amplo sentido, que existe uma certa tolerância para com a espiritualidade da RCC, desde que ela seja transigente com a tradicional e não renovada visão teológica a respeito do significado do sacramento do Batismo. Segundo essa visão sacramentalista estrita:

  1. Não há que se falar em “batismo no Espírito Santo”, pois que “há um só batismo”. Cf. Ef4,5.
  2. No Batismo (Sacramento), o fiel já recebe o Espírito Santo, de forma definitiva, não havendo portanto necessidade de outros “batismos” no Espírito Santo, ou de novas “vindas”, novas “replecões”.
  3. No Brasil, o Doe. 53 da CNBB foi enfático em nos aconselhar a “evitar o uso da expressão “batismo no Espírito Santo”.
  4. Muita gente (mas muita gente, mesmo!), especialmente do clero, “torce o nariz” quando se toca no assunto de experiência do Espírito, de curas, de libertação do mal, de falar em outras línguas, profecias carismáticas… e, isso tudo, é parte essencial da espiritualidade de Pentecostes!
  • Pergunto: existe algum documento oficial da Igreja que se refira à essa experiência da qual estamos falando como sendo o batismo no Espírito Santo?
  • Muitos teólogos, simpatizantes da RCC, ao escrever sobre o assunto, rodeiam, rodeiam e não chegam a usar o termo como sendo o mais adequado para expressarmos o que queremos dizer.
  • O próprio papa João Paulo II, ao falar sobre essa experiência, assim evitou o confronto: “A Igreja e o mundo tem necessidade de santos, e nós somos tanto mais santos quanto mais deixarmos que o Espírito Santo nos configure com Cristo. Eis o segredo da experiência regeneradora da “efusão do Espírito”, experiência típica que caracteriza o caminho de crescimento proposto pêlos membros dos vossos Grupos e das vossas Comunidades. (João Paulo II, 14/03/2002, à RCC na Itália).

Obviamente, o Espírito Santo não espera pela nossa “adequada” enunciação de suas operações, para agir. Ele continua soprando onde, como, quando e em quem quer. E – como já dissemos – nossas conceituações em nada modificam o significado e a realidade do seu operar. Mas a RCC precisa provocar reflexões, avançar, pressionar pelo reconhecimento claro daquilo que, é, segundo seu entendimento, fundamental para a capacitação de todos, na Igreja, para o serviço de testemunhar Jesus Cristo com poder. A RCC crê:

  1. Que Sacramento do Batismo não é o mesmo que batismo no Espírito Santo (cf. At 1, 4-8)
  • Pentecostes não foi uma cerimônia pública de ministração do Sacramento do Batismo
  • At 8 – Filipe e os samaritanos – os samaritanos tinham sido batizados, e só depois receberam o repleção do Espírito.
  • At 10 – Pedro na casa de Cornélio – Os presentes não tinham ainda sido batizados, mas receberam, (antecipadamente), a efusão do Espírito.
  • At 19 – Se todo crente já recebe a efusão, por que perguntaria Paulo àqueles de Éfeso, se já tinham recebido o Espírito?
  1. Que o Sacramento da Confirmação tem suas raízes no Pentecostes, mas não encerra em si todo o conteúdo daquela experiência.

Refletindo sobre a relação do batismo no Espírito Santo com o Crisma, o Pé. Salvador Carrillo Alday, M. Sp.S.[2], nos propõe a seguinte consideração:

“O Sacramento da Confirmação sem dúvida alguma tem suas raízes no acontecimento do Pentecostes. Assim se expressou a Constituição Apostólica sobre a Confirmação, quando declara: ‘O sacramento da confirmação perpetua na Igreja, de alguma forma, o dom do Pentecostes’”.[3]

Este sacramento, contudo, não esgota o conteúdo daquela experiência pneumática. O Pentecostes contém uma riqueza tão grande que não pode ficar reduzido unicamente à Confirmação. O que permanece no sacramento da Confirmação é que por ele se recebe o Dom do Espírito Santo, mas de forma alguma a Confirmação exclui outras efusões do Espírito Santo, sacramentais ou extra-sacramentais.[4]

E neste contexto, o batismo no Espírito Santo, que é uma efusão especial do mesmo, sem se confundir com a confirmação, também se origina e se explica à luz do mistério do Pentecostes.

Por outro lado, se a Confirmação não esgota o Pentecostes, menos ainda o batismo no Espírito Santo corresponde ao Pentecostes em toda a sua riqueza. O. Pentecostes, evidentemente, supera a Confirmação e o batismo no Espírito Santo”.

  1. O batismo no Espírito Santo não é necessário à salvação, (embora Deus o queira para todos), mas é fundamental para a capacitação para o serviço, para a missão, e para o testemunho (cf. At 1, 4-8; Jo 20, 21-22; A. A. 3).

“A atividade missionária exige uma espiritualidade específica, que diz respeito, de modo particular, a quantos Deus chamou a serem missionários. Tal espiritualidade exprime-se, antes de mais nada, no viver em plena docilidade ao Espírito, e em deixar-se plasmar interiormente por ele, para se tornar cada vez mais semelhante a Cristo. Não se pode testemunhar Cristo sem espelhar sua imagem, que é gravada em nós por obra e graça do Espírito. A docilidade ao Espírito permitirá acolher os dons da fortaleza e do discernimento, que são traços essenciais da espiritualidade missionária.

Paradigmático è o caso dos apóstolos que, durante a vida pública do Mestre, apesar do seu amor por ele e da generosidade da resposta ao seu chamado, mostram-se incapazes de compreender suas palavras, e renitentes em segui-lo pelo caminho do sofrimento e da humilhação. O Espírito transforma-los-á em testemunhas corajosas de Cristo e anunciadores esclarecidos de sua Palavra: será o Espírito quem os conduzirá pelos caminhos árduos e novos da missão.

Hoje, como no passado, a missão continua a ser difícil e complexa. Requer igualmente a coragem e a luz do Espírito, vivemos, tantas vezes, o drama da primitiva comunidade cristã, que via forças descrentes e hostis “coligarem-se contra o Senhor e contra o seu Cristo” (At 4,26). Como então, hoje é necessário rezar para que Deus nos conceda o entusiasmo para proclamar o Evangelho.

Temos de perscrutar os caminhos misteriosos do Espírito e, por ele, nos deixarmos conduzir para a verdade total (cf. Jo 16,13).(…) Como os apóstolos depois da ascensão de Cristo, a Igreja deve reunir-se no Cenáculo “com Maria, a Mãe de Jesus” (At 1,14), a fim de implorar o Espírito e obter força e coragem para cumprir o mandato missionário. Também nós, bem mais do que os apóstolos, temos necessidade de ser transformados e guiados pelo Espírito. (JOÃO PAULO II, in Redemptoris Missio, n° 87/92).

4 Que todo cristão já tem o Espírito Santo, mas não que necessariamente já tenha feito uma adesão pessoal e explícita a Jesus Cristo (cf. CT 19).

  • Note-se os cristãos só de nome.
  • Note-se a situação dos “cristãos por procuração” batizados quando crianças.

“Sem dúvida, todo cristão foi ‘batizado no Espírito’ quando recebeu o sacramento do Batismo na infância. Mas poucos fiéis tomam consciência da vida nova que o Batismo lhes trouxe. Os encontros da Renovação Carismática têm conseguido despertar essa consciência, constituindo-se como verdadeiro ‘Batismo no Espírito Santo’ para os conscientizados”.[5]

  1. Que Batismo no Espírito Santo é o Pentecostes pessoal disponibílizado a todo cristão, (cf. At 2, 38-39).

O batismo no Espírito é a ocasião em que a pessoa se converte, escolhe livre e pessoalmente Cristo como seu Senhor, confirma o seu batismo. É como quando o interruptor, permitindo a passagem da corrente, provoca o contato e faz que a luz se acenda.

Por esses motivos, é justo, repito, ver o batismo no Espírito em relação com o batismo-sacramento, como seu complemento ou renovação. Mas isso não é suficiente; ainda não se disse tudo. Vimos que a frase “batizar cem Espírito Santo” não se refere apenas ao que faz Jesus no sacramento do batismo, abrangendo toda a sua obra e, em especial, Pentecostes. Não podemos explicar o atual batismo no Espírito unicamente como um efeito retardado do nosso batismo sacramental. Não é só o nosso batismo o que é “revivido” com este; também o são a confirmação, a primeira comunhão, o matrimônio, tudo. Trata-se de fato da graça de “um novo Pentecostes”. Uma iniciativa nova, livre e soberana da graça de Deus que se funda como todo o resto, no batismo, mas que não acaba aí. Não faz referência apenas à iniciação, mas também ao desenvolvimento e à perfeição da vida cristã.

Só desse  modo se explica a presença do batismo no Espírito entre os pentecostais, para os quais a iniciação é um conceito estranho e o próprio sacramento do batismo não possui a importância que tem para nós, os católicos. O batismo no Espírito tem em sua própria raiz uma dimensão ecumênica que é necessário preservar a todo custo.[6]

  1. Que a repleção do Espírito – possível após Pentecostes – é sempre acompanhada de mudanças, de transformações, de sinais do operar do Espírito (cf. At 10, 45-46; e Pedro identifica esse fato com o batismo no Espírito, cf At 11, 15-16).

“É uma graça que muda a vida. No Congresso Internacional de Pneumatologia, que ocorreu no Vaticano por ocasião do XVI centenário do Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 1981, falando da Renovação Carismática e do batismo no Espírito, o teólogo Y. Congar disse: “Uma coisa é certa: trata-se de uma realidade que muda a vida das pessoas”, (cf. CANTALAMESSA, Raniero, opus cit., pg 144).

  1. Que Batismo no Espírito é dom de Deus, é promessa do Pai (e não oriundo da lei, ou de vontade humana).

Abaixo, uma argumentação do pentecostalismo clássico, que sugere uma maneira de se perceber a diferença entre as realidades que identificamos corno batismo-sacramento e batismo no Espírito Santo (Não que eu esteja propondo a adoção do ponto-de-vista do pentecostalismo clássico). Ilustro tal argumentação com um texto de Santo Agostinho e outro de Dom Paul J. Cordes, que fazem referência também ã Confirmação.

“Ao descreverem a experiência plena ou pentecostal do Espírito, (…) os pentecostais usualmente preferem a designação “batismo em” (ou com) o Espírito, ao invés de “batismo de (ou por) o Espírito. Embora, pois, todo o cristão, ao tornar-se cristão, foi batizado pelo Espírito-como-agente (1Cor 12:13a), os pentecostais acreditam que nem todo cristão ainda foi batizado por Cristo-como-agente em ou com o Espírito -como-elemento (Marcos 1:8 par.;1Co 12: 13b). Ou seja: os pentecostais acreditam que o Espírito batizou todo crente em Cristo (a conversão), mas que Cristo ainda não batizou todo crente no Espírito (o Pentecostes). O teólogo pentecostal Williams tem a seguinte maneira de explicar esta distinção algo complexa: ‘No novo nascimento, o Espírito Santo é o Agente, o sangue expiador o meio, o novo nascimento o resultado; no Batismo no Espírito, Cristo é o Agente (‘Ele vos balizará com o Espírito Santo e com fogo’), o Espírito é o meio, e o revestimento do poder o resultado’” (III, 47).[7]

“Assim, portanto, o homem recebe a vida espiritual no Batismo, que é uma regeneração espiritual: ao passo que na Confirmação o homem atinge a maioridade perfeita. Por assim dizer, da vida espiritual. Logo, o Papa Melquíades diz: “O Espírito Santo, que desce sobre as águas do Batismo, levando a salvação nas Suas asas, outorga na pia batismal a plenitude da inocência, na Confirmação, porém, outorga um aumento da graça. No Batismo nascemos de novo para a vida; depois do batismo, somos reforçados” (Sum. Theol. III, q. 72, art. 1). (…)

(…) E, portanto, pelo sacramento da Confirmação o homem recebe um poder espiritual a respeito de ações sagradas diferentes daquelas a respeito das quais recebe poder no Batismo, No Batismo, pois, recebe poder para fazer aquelas coisas que pertencem à sua própria salvação, no tocante à sua vida particular: ao passo que na Confirmação recebe poder para fazer aquelas coisas que pertencem ao combate espiritual com os inimigos da Fé” (ibid., art. 5).[8]

“A Igreja afirma que, juntamente com a eucaristia, os sacramentos do batismo e da confirmação são os da iniciação à comunhão com Deus e à confraternidade do povo de Deus (Catec 1212). Contudo, os teólogos fazem distinção entre o “banho do novo nascimento” (cf. Tt 3,5) e a concessão do Espírito Santo pela imposição das mãos (p. ex., At 19, 1-7), demonstrada claramente pela erudição bíblica e patrística. Os dois aparecem na iniciação cristã, juntos ou separados, mas relacionados um com o outro (cf. At 10, 44-48).”[9]

[1] Reflexões sobre a Renovação Carismática Católica, Ed. Loyola, 1999, pgs 21 e 27. 12

[2] In “O batismo no Espírito Santo”, Ave Maria Edições. 1997, pgs. 30 e 31.

[3] A Constituição referida no texto diz: “Desde essa época os Apóstolos, cumprindo a vontade de Cristo, comunicaram aos neófitos, mediante a imposição das mãos, o Dom do Espírito, que infundia a plenitude da graça do batismo (At 8, 15-17; 19.5ss).

Assim aconteceu que, como lemos na Carta aos Hebreus, entre os elementos da primeira formação cristã, se praticava a doutrina dos batismos e da imposição das mãos. Esta imposição das mãos era considerada, com sólidos motivos, pela tradição católica, como o princípio do sacramento da confirmação, que perpetua, de certa forma, o dom do Pentecostes” (Const. Apostólica Divinae consortium naturae, Notitiae 7 – 1971-334).

[4] O próprio Pentecostes não excluiu outras efusões do Espírito Santo. Nos Atos 4, 31, lemos: “Mal acabaram de rezar, tremeu o lugar onde estavam reunidos. E todos ficaram cheios do Espírito Santo e anunciavam com intrepidez a palavra de Deus”. – Na linha dos sacramentos deve-se lembrar a efusão do Espírito que é conferida através do sacramento da Ordem e a comunicação da graça e do Espírito Santo que cada sacramento confere

[5] BETTENCOURT, E., O que é preciso saber sobre a Renovação Carismática, síntese do livrinho homônimo de MIRANDA, Dom António Afonso, bispo de Taubaté (Editora Santuário, Aparecida, 1993), ïn “Pergunte e Responderemos”, Ed. Lúmen Christi, Rio de Janeiro, n. 374 (julho de 1993), p. 320

[6] CANTALAMESSA, Raniero, in “Ungidos pelo Espírito”, Edições Loyola, 1996, pgs 142 e 143

[7] Citado por BRUNER, Frederick Dale, in “Teologia do Espírito Santo”, Edições Vida Nova, 1970, pg. 47.

[8] Sum. Theol. III, q. 72, art. 1 e art 5

[9] Opus cit (nota n” 4 do rodapé), pgs 27 e 28.


Autor: Reinaldo Beserra dos Reis – II Congresso Teológico-Pastoral da RCC-2006)

 

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