Atividade diabólica ordinária

Atividade diabólica ordinária

Por atividade diabólica “ordinária” se entende a tentação num sentido geral. Nem toda tentação vem do diabo; ele é apenas uma das fontes de tentação. Devemos discutir a tentação diabólica e então ver se é possível fazer um reconhecimento (diagnóstico).

  1. Tentação em geral

Podemos definir tentação como qualquer estímulo ou convite para fazer o mal, para cometer pecado. Nossa natureza humana é dotada de liberdade, mas é uma natureza decaída e, portanto, fraca. Por causa disso muitas vezes nos encontramos em posição difícil de escolher entre o bem e o mal.

O Papa Paulo VI descreveu a tentação assim: “Nós a encontramos entre os homens, onde encontramos fraqueza, fragilidade, sofrimento, morte e algo pior: uma lei antagônica dual, uma desejando o bem e a outra dirigida ao mal, um tormento que São Paulo destaca com uma clareza humilhante para mostrar a necessidade e a boa sorte da graça salvífica, isto é, a salvação trazida por Cristo (cf. Rm 7). O poeta pagão [Ovídio] já tinha falado deste conflito interior no coração do homem: ‘Vejo e aprovo o que é melhor; Sigo o que é pior’.” (Paulo VI – Livrai-no do mal). É também esclarecedor ler a ultima parte do capítulo 7 da Carta de São Paulo aos Romanos, à qual o Papa Paulo VI se refere:

Sabemos, de fato, que a lei é espiritual, mas eu sou carnal, vendido ao pecado. Não entendo, absolutamente, o que faço, pois não faço o bem que quero; mas faço o mal que não quero. E, se faço o que não quero, reconheço que a lei é boa. Mas, então, não sou eu que o faço, mas o pecado que em mim habita. Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo. Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero. Ora se faço o que não quero, já não sou eu que faço, mas sim o pecado que em mim habita. Encontro, pois, em mim esta lei: quando quero fazer o bem o que se me depara é o mal. Deleito-me na lei de Deus no íntimo do meu ser. Sinto, porém, nos meus membros outra lei que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?… Graças sejam dadas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! (Rm 7, 14-25).

As tentações procedem, portanto, acima de tudo de nossa natureza decaída, de nosso temperamento, caráter, educação, formação (ou falta dela), nosso ambiente, amigos, companhias e de situações ocasionais. Em resumo, elas usualmente provêm de nós mesmos e do mundo no qual vivemos.

São Tiago questiona: “Donde vêm as lutas e as contendas entre vós? Não vêm elas de vossas paixões, que combatem em vossos membros?” (Tg 4. 1). Ele havia descrito previamente a predisposição ao pecado nas seguintes palavras: “Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai e alicia. A concupiscência, depois de conceber, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte” (Tg l, 14-15). O mesmo ensinamento pode ser encontrado em Mt 15, 19 e Mc 7, 21-23.

Não é preciso alongar a instrução sobre os aspectos da tentação que são tratados no catecismo, na teologia moral e na teologia espiritual. Existem vários livros que tratam destes assuntos. Aqui queremos enfatizar que as tentações procedem usualmente de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Isto, contudo, não exclui a possibilidade e o fato de que algumas tentações vêm dele que é chamado “o tentador” (cf. Mt 4. 5).

  1. Tentação diabólica

Quando o diabo intervém na vida dos indivíduos sua atividade usualmente tem forma de tentação. E precisamente por esta razão que chamamos a tentação diabólica de atividade diabólica “ordinária”. Que o diabo realmente tenta as pessoas não há dúvida. Sua existência está centrada no ódio a Deus e à humanidade: por isso, qualquer que seja a influência que ele tem sobre os seres humanos será sempre e exclusivamente com o propósito de separá-los de Deus e assim, indiretamente, impor a Deus o ódio que não pode afetar Deus diretamente.

Contudo, ao superar a tentação, uma pessoa tem a oportunidade de praticar e fortalecer a virtude, de rezar e mostrar a Deus que sua vontade está firmada no bem. Desta forma pode-se alimentar a própria formação espiritual, crescer na intimidade com Deus e obter méritos em abundância. É por estas razões que Deus permite a tentação, seja do diabo ou de alguma outra fonte. Inúmeras passagens na Sagrada Escritura que nos chamam a permanecer firmes diante da tentação:

Sede sóbrios e vigiai. Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar. Resisti-lhe fortes na fé. Vós sabeis que os vossos irmãos, que estão espalhados pelo mundo, sofrem os mesmos padecimentos que vós (1Pd 5. 8-9).

Finalmente, irmãos, fortalecei-vos no Senhor, pelo seu soberano poder. Revesti-vos da armadura de Deus para que possais resistir às ciladas do demônio (Ef 6. 10-11)

Sede submissos a Deus. Resisti ao demônio, e ele fugira para longe de vos (Tg 4. 7).

É este o motivo por que mandei colher informações a respeito de vossa fé, pois receava que o tentador vos tivesse seduzido e resultasse em nada o nosso trabalho. (1Ts 3,5)

O diabo também tentou Jesus, que o permitiu de modo que entendêssemos que o diabo não poupa ninguém e para nos ensinar a resistir e vencer a tentação. Com razão Paulo VI chamou o diabo de “o tentador por excelência”. E Jesus mesmo disse dele: “Ele era homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44).

Comumente, a tentação não é nada mais do que um estímulo ou uma atração para o pecado, mas a tentação que procede do diabo é usualmente muito mais insistente, muito mais forte do que as tentações que se originam em nosso interior ou no meio em que estamos inseridos.

O objetivo da tentação diabólica é separar o indivíduo de Deus e mantê-lo neste estado até que tenha destruído os valores fundamentais e os sentimentos de justiça e amor que o Criador implantou no coração humano. Então, a alma que deveria ser o templo da Trindade termina como “habitação” do diabo, no sentido de estar permanentemente influenciada por ele.

Não é fácil discernir a causa precisa desta abertura a Satanás, esta possibilidade de ser transformado em alguma coisa como ele. Entretanto, urna resistência constante aos apelos da graça até que sejam silenciados e não possam mais ser sentidos; a progressão da indiferença religiosa e da incredulidade a um estado de hostilidade; o abandono da verdade conhecida ou a tendência a negá-la até mesmo atacá-la – tudo isso é um sinal claro que tal pessoa não quer mais saber de Deus.

Estes sinais não só representam uma fenda no muro, mas uma porta escancarada para Satanás, que quer ocupar o espaço vazio deixado para ele. Estes sintomas são um convite implícito a ele, que está desejoso e pronto para fazer a pessoa um agente de suas más intenções. Desta maneira Satanás também macaqueia ou imita a Deus, pois, quando nos mostramos que queremos nos dar a Ele e seguimos os caminhos que levam em Sua direção, nos transformamos então em crianças de Deus (cf. 1Jo 3)

Hoje existe uma presença e ação diabólica mais difundida e profunda no mundo porque muitas pessoas estão completamente alheias a Deus. Como resultado, a tentação diabólica como descrevemos parece estar se espalhando com incrível rapidez. E isto afeta as pessoas não só como indivíduos, mas como membros de uma sociedade. As observações do Papa Paulo VI são muito importantes neste aspecto: “Esta questão do diabo, a influência que ele pode exercer num indivíduo tanto quanto nas comunidades, sociedades inteiras ou acontecimentos é um capítulo muito importante da doutrina Católica ao qual é dado pouca importância hoje, embora devesse ser estudado novamente” (Paulo VI).

Em uma carta apostólica dirigida aos jovens, o Papa João Paulo II declarou: “Não há motivo para terem medo de chamar o primeiro agente do mal por seu nome: o Maligno. A estratégia que ele usava e continua a usar é a de não revelar a si mesmo, de modo que o mal implantado por ele desde o início possa receber seu desenvolvimento a partir do próprio homem, dos sistemas e dos relacionamentos entre indivíduos de todas as classes e nações” (Osservatore Romano, abril de 1985).

Atacar, conquistar indivíduos é o primeiro objetivo de Satanás em sua guerra contra o homem. Mas ele deseja mais do que isso. O que ele procura é a destruição das sociedades humanas, começando pela família e por fim as nações. Em sua estratégia o indivíduo já corrompido é destinado a corromper a comunidade de tal modo que os benefícios da Redenção não sejam ali aplicados.

Este aspecto coletivo da tentação diabólica e a conquista gradual da sociedade pelo diabo é especialmente preocupante.

Parece, de fato que estamos vivendo na era do diabólico. Isto se confirma pelo surgimento e multiplicação dos cultos satânicos. Em maio de 1971 a revista Newsweek relatou que até aquele momento havia 2545 livros e artigos relacionados ao satanismo. Pode-se imaginar quantos existem agora!

E o que pensar dos movimentos esotéricos e não ortodoxos bem como a bruxaria e os cultos satânicos que estão atraindo até mesmo alguns do clero e religiosos?

Com toda razão o Papa João Paulo II referiu-se à presença diabólica no mundo: “As impressionantes palavras do Apóstolo João, ‘o mundo todo jaz sob o Maligno’ (1Jo 5. 19) aludem também à presença de Satanás na história da humanidade, uma presença que se torna tão mais aguda quando o homem e a sociedade afastam-se de Deus” (Osservatore Romano, 18 de agosto de 1986).

  1. O reconhecimento (diagnóstico) da tentação diabólica

Algumas tentações surgem a partir de situações em que nos encontramos – a partir de algumas pessoas, lugares ou coisas. Estas são as tentações mais freqüentes que as pessoas encontram e sua origem é tão óbvia que não requerem um reconhecimento mais específico. O problema surge quando a origem de uma tentação não é imediatamente evidente e por isso há razão para perguntarmos se foi causada por nós mesmos ou pelo diabo.

Quando falamos sobre tentação diabólica estamos numa área chamada “atividade diabólica ordinária” porque, como disse, é o tipo mais comum de intervenção diabólica. Mas uma vez que não existem sinais externos sensíveis de uma tentação diabólica, não é possível fazer um reconhecimento claro que indique com segurança se a tentação foi causada pelo diabo ou não. O que complica o problema é o fato de que o diabo poderia também estar envolvido de alguma forma em tentações originadas em nós mesmos.

Por outro lado. a que propósitos serviria tal diagnóstico? Qual interesse há em saber que o diabo nos tenta – e ele realmente o faz talvez mais do que sabemos – uma vez que as tentações podem ser vencidas? São Paulo nos dá um testemunho encorajador de que a ajuda de Deus não faltará: “Não vos sobreveio tentação alguma que ultrapassasse as forças humanas. Deus é fiel: não permitirá que sejais tentados além das vossas forças, mas com a tentação ele vos dará os meios de suportá-la e sairdes dela” (1Cor 10, 13). É também consolador saber que uma tentação que é vencida pode trabalhar em nosso favor como meio de crescimento na virtude e fonte de mérito.

Há ainda um outro aspecto que é de fundamental importância: o diabo não pode violentar nossa liberdade humana; ele não pode forçar nossa vontade. O máximo que ele pode fazer é tentar nos influenciar pela sugestão ou sedução. Como Santo Agostinho disse: “O diabo ladra, mas não morde, a menos que deixemos ser mordidos”. Somos nós mesmos que temos a decisão final.

Uma vez que não é possível saber se uma tentação procede do diabo, a única coisa que resta é uma suposição ou algum tipo de indicação. Quando, sem qualquer precedente, uma tentação surge de repente e fortemente, há uma razão para suspeitar que esta venha do diabo.

“Os pensamentos e impulsos que vêm de nosso próprio ego são conhecidos como nossos próprios; nós nos reconhecemos neles; nós encontramos nossos próprios vícios e más inclinações… Por outro lado pensamentos sugestionados pelo diabo são experimentados como vindo de um outro ‘ego’ diferente do nosso, isto é, de uma outra personalidade que em sua própria iniciativa nos fala e nos propõe idéias ou projetos que experimentamos como novos e estranhos aos nossos hábitos e inclinações costumeiros”[1].

No que diz respeito à tentação diabólica dirigida a uma sociedade ou coletividade deve-se ser ainda mais prudente e cauteloso em concluir que há uma intervenção diabólica. O Papa Paulo VI (documento citado) nos ofereceu algumas diretrizes a este respeito:

Existem sinais, e quais são, da presença da ação diabólica? E quais são os meios de defesa contra tal perigo traiçoeiro?

Devemos ser muito cautelosos para respondermos a primeira questão, mesmo se os sinais do Maligno parecem evidentes. Podemos admitir sua ação sinistra onde a negação a Deus torna-se radical, súbita e absurda; onde mentiras hipócritas e óbvias são apresentadas contra a verdade evidente; onde o nome de Cristo é rejeitado com ódio intenso e revoltoso (cf. l Cor 16, 22 e 12, 3); onde o espírito do Evangelho é negado e levado por água abaixo; onde o desespero tem a última palavra, etc. Mas é muito amplo e difícil um diagnóstico para que nos aventuremos a estudá-lo e autenticá-lo agora. Contudo, há um interesse dramático de todos neste assunto para o qual mesmo a literatura moderna necessita de prova.

Neste aspecto um nome se destaca acima de todos os outros nos tempos modernos: Adolf Hitler e um movimento coletivo: Socialismo Nacional ou Nazismo. Em 1935 o Bayerische Lehrerzeitung (jornal oficial do nazismo) proclamou triunfantemente: “O Socialismo Nacional é a mais alta forma de religião. Nunca houve outra maior”. Por isso o slogan do Nazismo: “Cristo foi grande; Hitler é maior”.

“A influência do poder diabólico torna-se especialmente efetiva quando os homens são reduzidos a uma ‘massa’ (multidão). O homem despersonalizado é especialmente suscetível à sedução pelo diabo. Este perigo torna-se ainda mais evidente se considerarmos o fenômeno de ‘sugestão em massa’… Uma ‘demonização’ da história pode, portanto, ocorrer por causa da força da idolatria – seja de um indivíduo ou da coletividade – a personalidade humana é sufocada pelo terror ou medo por meio de propaganda ou sugestão ou por uma mistura de ambos, e quando o indivíduo é induzido para o mal como parte de uma massa amorfa”[2].

[1] G. Cavalcoli, La buona Bataglia, Bologna, 1986 – citado por Corrado Balducci

[2] Zähringer, I demoni – Mysterium Salutis 1970


 

Autor: Ministério de Formação Paulo Apóstolo

Comunidade Javé Nissi

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