O Batismo no Espírito
O grande exegeta catarinense, tradutor apreciadíssimo de vários livros da Sagrada Escritura e autor de numerosos estudos bíblicos. Pe. Ney Brasil Pereira escreveu este artigo para a Revista Encontros Teológicos. (…)
Como exegeta tarimbado, Pe. Ney fez uma investigação exaustiva e brilhante sobre todos os textos do NT que falam do batismo no Espírito, em seguida consultou os principais escritos de eminentes exegetas que estudaram a questão. O resultado de sua pesquisa é a legitimidade inquestionável da expressão “batismo no Espírito”, tal como é usado na Renovação Carismática.
Revista de Cultura Bíblica (RCB), ano 38, vol XX n.37;38, pág 4, 1996 – São Paulo
Na recente Instrução da CNBB, intitulada Orientações Pastorais sobre a Renovação Carismática Católica (RCC), publicada em 27-11-1994, na parte do documento que aborda “Questões Particulares”, o item n. 54 adverte sobre a “ambigüidade” da expressão Batismo no Espírito. Assim se exprimem nossos Bispos, pedindo que se evite seu uso. “A palavra ‘Batismo’ significa tradicionalmente o sacramento da iniciação cristã. Por isso, será melhor evitar o uso da expressão Batismo no Espírito, ambígua, por sugerir uma espécie de sacramento. Poderão ser usados termos como efusão do Espírito Santo, derramamento do Espírito Santo…”
Como se trata de uma expressão bíblica, fundamentada no Novo Testamento, vale a pena aprofundá-la exegeticamente para se perceber os motivos — válidos ou não — que levaram nossos Bispos a tal recomendação.
Antes de tudo, um esclarecimento. A expressão “Batismo no Espírito”, como substantivo, não se encontra no Novo Testamento, Encontra-se, sim, várias vezes, em passagens bem determinadas, a expressão verbal equivalente — batizar ou ser batizado no Espírito — tratando-se sempre de uma ação exclusiva de Jesus, o Messias, em contraste com o batismo de João, o Precursor, João batiza “com água, para o arrependimento”, enquanto Jesus batiza “com Espírito Santo” (literalmente, em ou no Espírito Santo).
Veremos primeiro os textos. bastantes conhecidos, fazendo depois o comentário, antes de propor uma solução.
- OS TEXTOS
1.1 – Nos 4 Evangelhos trata-se sempre da palavra de João Batista, que contrapõe o próprio batismo, preparatório, inferior, a um “batismo” superior, definitivo, de Jesus. Devemos distinguir, porém, Mateus e Lucas, os quais trazem a hendíadis “com Espírito Santo e com fogo”, de Marcos e João que trazem a expressão simples “batizar no (com) Espírito Santo”, sem referência ao “fogo”. Primeiro, os textos de Mt 3,11 e Lc 3,16 provavelmente da “Quelle”, justapostos, para se perceberem melhor as semelhanças e diferenças:
Mt 3,11: Quanto a mim, eu vos batizo na água (com água) para a conversão (gr. Metánoia, lit. arrependimento), mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu, e eu não sou digno de tirar-lhe (lit. carregar, levar) as sandálias; ele, porém, vos batizará no (com) Espírito Santo e no (com) fogo.
Lc 3,16: Quanto a mim, eu vos batizo na água (com água); vem, porém, o que e mais forte do que eu, do qual não sou digno de desatar a correia das sandálias; ele voz batizará no (com) Espírito Santo e no (com)
E agora, os textos de Mc 1,7-8 c de Jo 1,33, sem a referência ao “fogo”:
Mc ! .7-8: Depois de mim vem o que é mais forte do que eu, e eu não sou digno de, inclinando-me, desatar-lhe a correia das sandálias. Eu vos balizei com água; ele, porém, vos batizará com (em) Espírito Santo.
Jo 1 ,33: Eu não o conhecia, mas aquele que me mandou batizar com (em) água foi quem me disse: Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer sobre Ele. Esse e quem batiza com (em) Espírito Santo.
1.2 — Nos Atos dos Apóstolos, -a contraposição entre “batismo na água” e “batismo no Espírito Santo” aparece por duas vezes, não mais, porém, na boca de João Batista e sim na do próprio Jesus, como promessa que se cumpre no Pentecostes, mas sem o acréscimo do fogo que apareceu apenas em Mt 3,1 1 e Lc 3,16, como vimos acima. Vejamos também, comparando-os, esses dois textos.
At 1,4-5: Tomando refeição com eles. Jesus lhes ordenou que não se afastassem de Jerusalém, mas aguardassem a Promessa do Pai — aquela que de mim ouvistes: pois João batizou com (na) água, vós, porém, sereis batizados no (com) Espírito Santo não depois de muitos dias.
At 11,16: (Pedro, defendendo-se dos judaizantes, recorda as palavras de Jesus): Lembrei-me então desta palavra do Senhor, segundo dizia: João na verdade batizou com (na) água; vós, porém, sereis batizados no (com) Espírito Santo.
1.3 — Finalmente, na primeira carta aos Coríntios (1Cor 12,13), também Paulo fala do “batismo num só Espírito”, usando a voz passiva (passivo “teológico”!) do verbo batizar, como em At 1,5 e 11.16 mas sem atribuir expressamente esta palavra ao Senhor: “Pois num só Espírito todos nós fomos batizados, para um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres, e todos bebemos de um só Espírito… ”
- COMENTÁRIO
Diante do fato da diferença entre a ação “batismal” do Messias em Mt e Lc, “no Espírito Santo e no fogo”, comparada com a mesma ação em Mc e Jo, só “no Espírito Santo”, surge a pergunta: que quererá dizer o “fogo”? E esse “fogo” pertence às palavras genuínas de Jesus, transmitidas pela “Quelle”, mesmo que Mc e Jo, além de At 1,5 e 11,6, só falem da promessa de os discípulos serem “batizados no Espírito Santo”, e Paulo também só constate que “todos nós fomos batizados num só Espírito”, segundo 1Cor 12,13?
O fato é que a mesma palavra do Precursor, reafirmada por Jesus, chegou a nós em tradições diferentes, que é preciso interpretar. O “fogo” é sabido, pode ser luz que ilumina e conforta e dinamiza, e tal foi o “fogo” do Pentecostes, segundo At 2,3: “E apareceram, distribuídas entre eles, línguas como de fogo, pousando sobre cada um deles. E ficaram todos repletos do Espírito Santo e puseram-se a falar…”
Mas o contexto de Mt 3,11 c Lc 3,16 é a pregação severa do Batista, que está anunciando a vinda do Messias justiceiro, que “traz na mão a pá de joeirar, vai limpar a sua eira e recolher o trigo no celeiro, mas a palha ele a queimará num fogo inextinguível”… (Mt 3.12 e Lc 3,17!), quer dizer: o batismo “no fogo” seria, para João, o do julgamento definitivo, escatológico do Messias que, já segundo Is 11,4 “vai ferir a terra com a vara de sua boca e com o sopro de seus lábios matará o perverso! “Também Is 4,4b fala do “sopro (Espírito) do julgamento” do Senhor, do “sopro (Espírito) de fogo abrasador” que vem “lavar a imundície das filhas de Sião”‘… E Ml 3.2 anuncia o temor do “dia da sua vinda”, a vinda daquele que e “como o fogo do fundidor e como a lixívia dos lavandeiros”… “Fogo”, portanto, parece ser, sem sombra de dúvida, em Mt 3,11 3 Lc 3,16 o fogo do julgamento. Nesse sentido, é interessante evocar a misteriosa palavra de Jesus em Lc 12.49-50 que fala do “fogo” que ele vem trazer à terra, e do “batismo” que ele anseia por consumar…
Há, aliás, várias possibilidades de entender o “batismo no Espírito Santo e no fogo”, de Mt 3,11 e Lc 3,16: 1) a forma original seria só “batizar no fogo” ou “com fogo”, contrapondo-se ao batismo “na água” ou “com água”, no sentido ameaçador já explicado acima; 2) “no Espírito Santo e no fogo” seria uma hendíade, como lembra A. LAPIDE[1], devendo-se entender: “no fogo (com o fogo) do Espírito Santo, fogo ao mesmo tempo purificador (dos bons) e realizador do julgamento (dos maus); 3) “no Espírito Santo e no fogo” seria uma fórmula abrangente, anunciando por um lado o “batismo no Espírito” para os que crerem e, por outro lado, ameaçando com o “batismo de fogo” os que se obstinarem na descrença.
A propósito, parece iluminador um texto da Regra da Comunidade, de Qumran: “Então Deus purificará por sua fidelidade todas as obras do homem e tornará puro para ele o corpo do homem, dele arrancando todo espírito de perversidade das entranhas de sua carne e purificando-o, pelo Espírito ‘de santidade’ (Espírito Santo), de todas as ações ímpias. E aspergirá sobre ele o espírito de fidelidade, como águas purificadoras…” (1QS 4,20-21[2]). Um pouco acima, a “Regra” anunciava, para os ímpios, o “opróbrio da exterminação no fogo das regiões obscuras”… (1QS 4,13). Assim, é possível, como o nota SCHOONENBERG[3], que João Batista tenha assumido de Qumran essa expectativa de um Juízo final que se realizaria pelo fogo (e pela água purificadora) do Espírito. Aliás, já EZEQUIEL anunciara essa purificação, embora não pelo fogo, mas pela água, e pela infusão de um “novo espírito e um novo coração” no íntimo de seu povo… (cf Ez 36,25-27).
O fato é que Jesus se dissocia dessa irrupção violenta do Juízo e prefere apresentar-se manso e humilde (cf Mt 11,29), sua vida misericordiosa sendo significada pelo Espírito que paira sobre ele, em seu batismo no Jordão, sob forma não do fogo impetuoso mas da pomba da paz (cf. essa referência à pomba nos quatro evangelhos: Mt 3,16 e paralelos!). É por isso também que a sua palavra inicial, no começo do seu ministério, não é a ameaça do Julgamento, mas a boa notícia da proximidade/presença do Reino: “Completou-se o tempo, está próximo o Reino de Deus; arrependei-vos e crede nesta boa-notícia!” (Mc 1,15 e par.; Mt 4,17).
Seja como for, como o nota ainda SCHOONENBERG[4], “a interpretação cristã da pregação de João Batista acentuou de modo particular a ligação do Messias com o Espírito, passando a omitir a referência ao ‘fogo'”. E é esse acento que notamos nas versões marcana e joanina das palavras do Batista, o qual, segundo esses evangelistas, anuncia, a respeito do Messias, que ele ‘batizará no Espírito Santo’, o mesmo acento retornando aos textos de At 1,5 e 11,16, como já vimos, bem como na 1Cor 12,13.
Mas examinemos, agora, os termos da expressão:
1) batizar, gr. baptízein, que corresponde ao hebr. taba[5], significa mergulhar, imergir aquele(a) que é batizado(a) ficando totalmente envolvido(a) pelo elemento no qual ou com o qual é “batizado(a)”. Este elemento, normalmente a água, estando embaixo, no caso da imersão, o ato de “batizar” implica um descer, afundar, e depois emergir, de onde Paulo tira a imagem do batismo como participação na morte-sepultamento-ressur-reição do Cristo (cf. Rm 6,3-5). Em Mt 3,6 se fala dos que eram batizados “no Jordão”, como o local onde se realizava a imersão. Em Mt 3,11b se fala do batismo “na água, ou “com água”, mesma preposição gr. en, como a preposição hebr. be podendo ter sentido local (em) ou instrumental (com), mas prevalecendo o sentido instrumental: Eu vos batizo com água, que se torna mais claro no batismo por imersão.
2) no Espírito Santo, literalmente “com Espírito Santo” (sem artigo) ou “em Espírito Santo”, gr. en pneumati hagioi. Estaria aqui implicada a idéia de uma “imersão no Espírito Santo”? ou de uma “aspersão com Espírito Santo”? Em todo caso, trata-se de um “batismo” excepcional, definitivo, escatológico, contraposto ao batismo com / na água, de João. E o agente desse novo batismo, nos quatro textos evangélicos, é Jesus, o Messias, aquele sobre quem o Espírito (com artigo) vem e nele permanece (cf. Jo 1,33). Nos restantes três textos (At l ,5 e 11,16.1 Cor 12,13), o agente e indicado pela voz passiva, que normalmente é o “passivo teológico” em At 1,5 e 11,16 o passivo, numa palavra de Jesus, sugere que é Deus quem o realiza[6].
3) Mas o que significa, afinal, nesses textos do Novo Testamento “banzar” ou “ser batizado no/com Espírito Santo”? É evidente que os quatro textos evangélicos resumem, com essa linguagem metafórica, a atividade messiânica de Jesus, contrapondo-a à atividade batismal, precursora, preparatória, de João Batista. Jesus “cheio do Espírito Santo” e “movido pelo Espírito Santo” (cf. Lc 4,1), inunda de Espírito Santo todos aqueles a quem atinge sua palavra e sua ação salvadora. Inclusive porque os evangelhos, com exceção da breve e obscura passagem de Jo 3,22-26 e 4,1-3, a qual alude a um rito batismal praticado por Jesus e seus discípulos[7], ignoram uma atividade propriamente batismal de Jesus, apresentando sua ordem do batismo universal somente na missão confiada aos discípulos após a Ressurreição (cf. Mt 28,19 e, em dependência de Mt, o texto secundário de Mc 16,16). Temos ainda, é verdade, a palavra de Jesus em Jo 3,5 sobre o “novo nascimento”, “da água e do Espírito”, como condição para entrar no Reino de Deus, numa linguagem sacramental que certamente já reflete a prática batismal da comunidade joanina, numa perspectiva de certo modo mais antropológica, do que teológica, isto é, ressaltando mais o esforço humano: “é preciso nascer de novo”, injunção semelhante à de “converter-se” e “tornar-se como as crianças” (cf. Mt 18.2).
Então, o “batismo no Espírito” nada tem a ver com o batismo na água, mesmo o batismo logo praticado pelos discípulos de Jesus por sua ordem (cf. Mt 28,19)? A relação que há entre um e outro não é a relação entre efeito e causa imediata, como se o batismo cristão na água fosse causa imediata do “batismo no Espírito” com os seus dons, embora o texto de At 2, 38 o dê a entender: “Convertei-vos, receba cada um de vós o batismo (na água!) para o perdão dos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo! ” Isto é, na via normal das coisas, a Igreja estabeleceu o batismo (na água) como o sinal externo da conversão e adesão pela fé ao Senhor, seguindo-se depois a imposição das mãos com a invocação do nome de Jesus, o efeito resultante sendo a manifestação visível dos dons do Espírito Santo (cf. At 8,15-17, Pedro e João na Samaria; At 19,5-6, Paulo e os joanitas de Éfeso etc).
E verdade que o primeiro Pentecostes, de At 2,1-4, ocorrido em realização da promessa do Senhor em At 1,5 (“sereis batizados no Espírito Santo dentro de não muitos dias”), acontece independentemente do batismo na água. Também antes do batismo na água é independentemente até da imposição das mãos ocorre o “batismo no Espírito” dos pagãos que, na casa de Cornélio, ouvem de coração atento e bem disposto o kerigma do apóstolo Pedro (cf At 10,44-48).
Como quer que seja, ao menos para Lucas, o “batismo no Espírito” por excelência, o modelo de todo e qualquer “batismo no Espírito” para o futuro, é o que ocorre no Pentecostes, em At 2,1-4. Naquela manhã, os apóstolos e primeiros discípulos foram literalmente “inundados”, “mergulhados”, “batizados” no Espírito Santo, ficando dele “repletos” e pondo-se a “falar em outras línguas”, sendo entendidos pelos habitantes dos diferentes povos da terra, presentes em Jerusalém, “cada um na sua própria língua”, numa espetacular reversão da confusão das línguas em Babel (cf. Gn 11,1-9).
De resto, a expressão não volta mais, no Novo Testamento, a não ser nas cartas de Paulo, precisamente na 1Cor 12,13 já citada acima: “num só Espírito fomos todos batizados, para sermos um só corpo”, o apóstolo querendo ali insistir na unidade dos cristãos, apesar da diversidade de condições e de carismas, motivo e garantia da unidade sendo o “único Espírito, no qual todos fomos batizados”…
A realidade, porém, da riqueza da pneumatologia do Novo Testamento, que ultrapassa essa fórmula, é bem conhecida, bastando para tanto relembrar Gl 3,2-5, onde Paulo recorda aos gálatas o Espírito e os carismas recebidos quando de sua adesão à fé, não por causa da prática da Lei; também em Gl 4, 6, Paulo afirma que “Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho”, tornando-nos filhos… e em Rm 5,5 fala-nos do “amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”… Isto, sem esquecer os belos capítulos 12-14 da primeira carta aos coríntios, capítulos inteiramente consagrados aos dons do Espírito Santo na comunidade.
Por último, se tentarmos definir o “batismo no Espírito Santo” segundo seus efeitos, no Novo Testamento, podemos, seguindo SCHOONEN-BERG[8] dizer:
- a) trata-se de uma efusão de dons, uma superabundância e plenitude, como deduzimos do freqüente uso da expressão “estar cheio do Espírito Santo” que encontramos p. ex. em At 2,4; 4,8.31; 6,3.5; 7,5.5; 9,17; 13,9 etc.
- b) essa plenitude do Espírito e a simultânea união com Cristo são conscientes e reconheceis, como o foram. p. ex ., nos gálatas recém-convertidos (cf. Gl 3,2-5).
- c) essa efusão do Espírito atinge o próprio corpo, manifestando-se na glossolalia, na profecia, nas curas, o corpo tornando-se “templo de Deus e habitação do seu Espírito” (cf. 1Cor 3,16).
- d) esses dons não são para fruto particular, mas para edificação do “corpo”, da Igreja (cf. 1Cor 12,14).
- e) esses dons não são ainda a perfeita plenitude, que se dará somente no dia da vinda do Senhor, como o lembra Paulo na 1Cor 1,7 e, censurando a pretensão de alguns, em 1Cor 4,8. Ate lá, o espírito “nos guiará pelo caminho” (gr. hodegései) “até a plenitude da Verdade”, como nos promete o Senhor em Jo 16,13. E “caminho” é caminho, não é ainda a meta.
CONCLUSÃO
É sabido que a expressão “batismo no Espírito” foi redescoberta pelo movimento pentecostal, primeiro entre os protestantes, desde inícios do século, e agora, desde 1967, entre católicos, na RCC. Meu objetivo aqui não foi comparar os dados do Novo Testamento, vistos acima, com a pneumatologia pentecostal e/ou carismática. Isto faz muito bem SCHOONENBERG, R, no estudo mais vezes citado[9], e o fazem outros autores[10]. Quis simplesmente rever os textos em que a expressão ocorre e analisá-los, mesmo se sucintamente.
Da análise das quatro ocorrências nos Atos dos Apóstolos ficou claro, penso, que se trata de um fato de dimensão mais coletiva que individual, no sentido de que designa mais a ação abrangente do Messias do que seu efeito individual em nós (evidentemente incluindo esse efeito), algo mais recebido do que procurado, uma ação mais “do Senhor” do que nossa, sendo a síntese da ação messiânica daquele que é “o mais forte” e que não batiza somente “com água”, mas “com Espírito Santo” (cf. Mc 1,8 e Jo 1,33, At 1,8 e 11,16), o qual “renova a face da terra” (SI 104/103,30).
Quanto à única ocorrência da expressão no restante do Novo Testamento, isto é, na 1Cor 12,13, temos ali provavelmente já a identificação do “batismo no Espírito” com o sacramento da iniciação cristã, o nosso Batismo, naturalmente também com seus efeitos sensíveis. E o mérito da Renovação Carismática Católica está justamente em suscitar a consciência dessa graça, desse dom. Nesse sentido, gostaria de citar D. Estevão BETTENCOURT: “Sem dúvida, todo cristão foi ‘batizado no Espírito’ quando recebeu o sacramento do Batismo na infância. Mas poucos fiéis tomam consciência da vida nova que o Batismo lhe trouxe. Os encontros da Renovação Carismática têm conseguido despertar essa consciência, constituindo-se como verdadeiro ‘Batismo no Espírito’ para os conscientizados“[11].
Não se trata, pois, de algum “novo” Batismo, mas de uma dimensão nova, mais consciente e irradiante, do nosso fundamental sacramento, o “único Batismo” de Ef 4,6 e do Credo niceno-constantinopolitano, que todos os fiéis recebem. Como, porém, o Espírito “sopra onde — e quando — quer’ (cf. Jo 3,8), ele está agora — e isto é uma graça! — chamando a atenção de sua Igreja para a sua presença carismática na vida dos seus fiéis, servindo-se para isso de uma nova e mais rica interpretação da expressão que encontramos mais vezes, como vimos ao longo deste estudo, nas páginas do Novo Testamento: “Sereis batizados no Espírito Santo”.
Por isso quanto à recomendação dos nossos Bispos, nas suas já citadas Orientações Pastorais sobre a RCC parece pertinente o que observa Frei Felipe Alves, no seu comentário às referidas Orientações. “Esta expressão, na RCC, costuma ser explicada, explanada. E se alguns não a entendem, o mesmo acontece com muitas outras expressões usadas pela/na Igreja. Nem por isso a prudência eclesial as elimina, tais como ‘Igreja que nasce do povo’, ‘Penitência’, ‘Ordem’ etc”[12].
Assim, mesmo reconhecendo o risco da ambigüidade, parece difícil encontrar um substitutivo adequado à expressão já consagrada, mesmo.
Exatamente, sete vezes, sempre na forma verbal: “batizar” ou “ser batizado” “no Espírito”. De resto, eu não diria, sem explicações, que “este Batismo e mais importante que todos os sacramentos, pois dele dependem” (ibid. )… porque “efusão do Espírito Santo” ou “derramamento do Espírito Santo” — que são as expressões sugeridas pela CNBB — não parecem a mesma coisa. Continuar, então, a usar a expressão, contrariando nossos Bispos? Não, não usá-la simplesmente, ignorando a advertência. Levando, porém, a advertência em conta, esforçar-se por esclarecer a expressão bíblica, acrescentando os substitutivos indicados. Porque a advertência ajudará, com certeza, a evitar equívocos e mal-entendidos, que não constroem a Igreja.
[1] A LAPIDE, C., Commentaria in Quatuor Evangelia, Editio novíssima, anterioribus auctior, Venetiis 1740 (ed. original em Anvers/Antuérpia, 1643), coment. in Mt 3, 11.
[2] Cf CARMIGNAC, J. e GU1LBERT, R, Lês Textes de Qumran traduits et commentés, Letouzey et Ané, Paris, 1961, p. 36, também em GARCIA MARTINEZ; F. Textos de Qumran. Edição completa e fiel dos Documentos do mar Morto, Vozes, Petrópolis. 1995 (trad. ), p. 50
[3] . SCHOONENBERG, R, O Batismo no Espírito Santo, in Kung. H. et alii, A experiência do Espírito Santo, Vozes, 1979 (trad.), p. 90-112, aqui, p. 93
[4] Ibid., p. 93
[5] . Cf COENEN, L. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, trad. Ed. Vida Nova. São Paulo, 1981, vol. I, p. 259ss. Ver também o vol. II, p. 130-135, especialmente p. 132s.
[6] SCHOONENBERG, R. op. cit.. p. 92
[7] Embora, em Jo 4, 2, o evangelista tenha tido o cuidado de observar que não era Jesus quem batizava, mas os seus discípulos.
[8] SCHOOONENBERG, P., op. cit., p. 97-98.
[9] Id., ibid., p. 98-109
[10] Só depois de elaborado este artigo e que tomei conhecimento do excelente verbete Carismáticos, com o subtítulo Renovação Carismática, de A. BARRUFFO, no “Dicionário de Espiritualidade”, Paulus, São Paulo, 1989, p. 88-89, o ‘ batismo no Espírito” sendo estudado nas pp. 95-96, sob o título “A efusão do Espírito”.
[11] BETTENCOURT, E., O que é preciso saber sobre a Renovação Carismática, síntese do livrinho homônimo de MIRANDA, Dom António Afonso, bispo de Taubaté (Edit. Santuário, Aparecida, 1993), in “Pergunte e Responderemos”, Ed. Lumen Christi, Rio de Janeiro, n. 374 (julho de 1993), p. 320. Ver toda a síntese, ibid.. ., p. 318-328
[12] ALVES, F. G ., Análise do documento da CNBB “Orientações Pastorais sobre a Renovação Carismática Católica”, in REB 55(1995), n. 218, junho, p. 385-390. aqui, p. 388. Ai o autor afirma que a expressão “batismo no Espírito” aparece “quatro vezes” no Novo Testamento. Como demonstrei, aparece mais.
Autor: Pe. Ney Brasil Pereira