Felizes os Misericordiosos

Felizes os Misericordiosos

A DINAMICIDADE DO AMOR E DA VERDADE NA SALVAÇÃO DA HUMANIDADE

Na solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria em Agosto de 2015, enviando os jovens na última etapa de preparação para a Jornada Mundial da Juventude que será celebrada neste ano de 2016 de 26 a 31 de julho na Cracóvia, indagou o Papa Francisco:

“E tu, caro jovem, cara jovem, já alguma vez sentiste pousar sobre ti este olhar de amor infinito que, para além de todos os teus pecados, limitações e fracassos, continua a confiar em ti e a olhar com esperança para a tua vida? Estás consciente do valor que tens diante de um Deus que, por amor, te deu tudo? Como nos ensina São Paulo, assim Deus demonstra o seu amor para conosco: quando ainda éramos pecadores é que Cristo morreu por nós (Rm 5, 8). Mas compreendemos verdadeiramente a força destas palavras”?

Como é bem característico do Papa Francisco, palavras provocativas e que nos dão uma injeção de ânimo. Sob o prisma desta provocação delineamos alguns pontos que consideramos relevante nesta reflexão, não temos e nem poderíamos ter a intenção de fechar o assunto, uma vez que a misericórdia é a teofania do próprio Deus, ela já diz por si só, o quanto é ampla e incomensurável.

A misericórdia é a rubrica de Deus atestando a adoção de seus filhos que somos nós (Rm 8,15-17). O dito de Jesus no evangelho de João ilustra muito bem esta percepção: Nisto conhecerão que sois os meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (13,35). Contudo, a proposta do sermão da montanha não se restringe somente ao grupo dos discípulos, vai além, trata-se de uma ação constante de altruísmo, trata-se de um estilo de vida, de uma atitude no agir para com as pessoas.

O catecismo da Igreja Católica elenca as famosas obras de misericórdia que se expressam em ações caritativas em que socorremos o próximo em suas necessidades corporais e espirituais. Destacam-se entre as obras espirituais instruir, aconselhar, consolar, confortar, perdoar e suportar com paciência; já as corporais se enquadram perfeitamente no sermão escatológico de Mateus (25,31-46), tive fome e me deste comer, tive sede e me deste de beber, acrescentando ainda a estas a doação de esmolas (2447).

Já no século VIII antes de cristo o profeta Oséias exortava os Israelitas a respeito da vontade de Deus: “misericórdia eu quero, conhecimento de Deus mais do que holocaustos”. De maneira enfática Jesus retoma este ensinamento no evangelho de Mateus: “Portanto, ide aprender o que significa isto: Misericórdia quero, e não sacrifícios. Pois não vim resgatar justos e sim pecadores” (9,13). A bíblia nos apresenta a misericórdia não como uma atitude passiva de Deus para conosco, vemos um Deus que está em ação que vem em socorro de seus filhos, pois o filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido (Lc 19,10).

A grandeza desta misericórdia de Deus para conosco é perfeitamente manifestada na justificação do ser humano. Maravilhado com esta manifestação de amor Santo Agostinho assim expressa: “a justificação do ímpio é uma obra maior que a criação dos céus e da terra”, pois “os céus e a terra passarão, ao passo que a salvação e a justificação dos eleitos permanecerão para sempre”. Usando a expressão da carta aos Efésios: “No entanto, Deus, que é rico em misericórdia, por meio do grande amor com que nos amou, deu-nos vida com Cristo, estando nós ainda mortos em nossos pecados, portanto: pela graça sois salvos”! (2,4-5). Trata-se de um amor irracional, loucura para os gregos, escândalo para os judeus diz São Paulo (I Cor 1,23), um Deus que se fez pecado por causa de nos (II Cor 5,21).

Ainda hoje o amor de Deus é causa de escândalo, não são poucas às vezes em que são relatados testemunhos de pessoas que foram resgatas das drogas, do adultério e de muitos outros pecados, e quando expressam sua nova vida, são alvos de críticas tais como: esse fulano! Não vale nada. Fogo de palha isso sim; não dou um ano e ele volta à vida velha e a mascará cai. Na verdade estas conotações expressam a incredulidade no poder do amor de Deus que é capaz de resgatar o ser humano de suas piores misérias. Cremos não ser coincidência o Santo Padre convocar este ano da misericórdia, pois no coração da misericórdia esta a face de Deus. Deus é misericórdia!

Diante dessa teofania do amor de Deus nosso coração se enche de alegria e nossa razão se põe a questionar: Ter misericórdia é aceitar tudo? Qual a relação entre misericórdia e pecado? Misericordioso é aquele que perdoa setenta vezes sete? A misericórdia é oposta a justiça? Como se aplica a misericórdia na realidade da juventude pós-moderna?

No cerne de todas estas perguntas está à relação entre misericórdia e verdade, ou misericórdia e justiça. Não há misericórdia se não houver reconhecimento de nossas falhas, não há misericórdia se não houver libertação de nossos pecados, a misericórdia não nos deixa na estagnação de nossas falhas antes nos provoca, nos arranca da sonolência convocando-nos a retomar o protagonismo de nossas vidas. O amor incondicional e transformante de Deus nos põe em confronto fazendo nos pensar sobre o que “eu sou” e o que “eu devo ser”.

É pela bondade e pela verdade que se expia a iniquidade; pelo temor do Senhor evita-se o mal (Pr 16,6). Este amor não é atitude de fraqueza, é sinal de virtude. Na quaresma de 2015 assim expressou Papa Francisco: “Ter um coração misericordioso não significa ter um coração débil. Quem deseja ser misericordioso necessita de um coração forte, firme, fechado ao tentador, mas aberto a Deus”.

Sobre a realidade do pecado e a necessidade da conversão o catecismo usa as palavras de Santo Agostinho para demonstrar a necessária participação do homem no projeto salvífico do Pai: “Deus, que nos criou sem nós, não quis salvar-nos sem nós”. A misericórdia, como já dito anteriormente, não é passividade, supõe ação tanto de quem perdoa como de quem é perdoado.

“A conversão requer o reconhecimento do pecado. Contém em si mesma o juízo interior da consciência. Pode ver-se nela a prova da ação do Espírito de verdade no mais íntimo do homem. Torna-se, ao mesmo tempo, o princípio dum novo dom da graça e do amor: “Recebei o Espírito Santo”. Assim, neste “convencer quanto ao pecado”. descobrimos um duplo dom: o dom da verdade da consciência e o dom da certeza da redenção. O Espírito da verdade é o Consolador” (1848).

Manifestamos nossa misericórdia quando nos colocamos perante a verdade e sob a luz da verdade. Muitas vezes somos ludibriados em pensar que seremos misericordiosos se concordamos com o erro alheio, pois pensamos: devo agir com misericórdia, não vou julgar, não devo cobrar. Uma coisa é emitirmos juízo de salvação ou condenação às pessoas, outra é o testemunho da verdade. Não existe amor verdadeiro se este não projeta a pessoa para produzir o seu melhor. Não posso dizer que amo um amigo se não lhe exorto em suas falhas, ainda mais se estas colocam em risco sua salvação.

Não são poucos os casos em nossos tempos de uma compreensão deturpada de misericórdia. Na entrevista concedida pelo Papa Francisco no voo de volta da JMJ no Brasil, quando questionado em relação ao monsenhor Ricca (acusado de ter amantes) e como o pretendia enfrentar toda esta questão do lobby gay, o Santo Padre responde com firmeza e serenidade sobre a homossexualidade: “Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, pra julgá-la? O catecismo da Igreja católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas devem ser integrados na sociedade. O problema não é ter essa tendência. Não! Devemos ser como irmãos. O problema é fazer lobby, o lobby dos avaros, o lobby dos políticos, tantos lobbys. Esse é o pior problema”. Esta resposta foi por vezes tirada de seu contexto e mal interpretada.

O Papa é preciso ao afirmar: “O catecismo da Igreja católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas devem ser integrados na sociedade. O problema não é ter essa tendência. Não”! Aqui está a relação entre misericórdia e justiça/verdade. Para a Igreja o pecado está na prática e não na tendência, uma coisa é acolher o pecador com todo amor e devido respeito que ele merece, outra é bater-lhe nas costas e dizer: não está errado não é pecado! E não foi isso que o Papa fez! O anuncio da verdade está nas entranhas da misericórdia!

Com esta falsa ideia de misericórdia sem verdade, caminhamos para a construção de uma casa sobre a areia, cujo resultado final será a ruina total (Mt 7,24-27). A força salvífica do evangelho tem sido substituída por um psicologismo espiritual, há uma tendência entre confessores e diretores espirituais em ler a realidade humana somente à luz da psicologia, tal atitude supõe uma concepção de homem somente em sua dimensão física e psíquica, desconsiderando sua dimensão espiritual. Embora o pecado haja no ser humano como um todo, sua raiz primeira é espiritual. Com isto, não significa que devemos sair acusando as pessoas ou ameaçando-as de irem para o inferno, mas devemos promover uma leitura reta da situação e sua relação de salvação com o criador. Lembremo-nos: para a fé cristã, Jesus é o único mediador, salvador dos homens (Atos 4,12), mas precisamente para a doutrina católica, Jesus é o protótipo do ser humano, sua forma perfeita, o modelo de perfeição que devemos seguir e almejar alcançar (Gs 22).

Ao sustentarmos aqui a necessidade da verdade não dispensamos o perdão. Para ser verdadeiro não preciso deixar de perdoar, deixar de amar, mas transformar esse amor, esse perdão em fonte de vida e vida em abundância. O Presentismo que se apossou da nossa juventude, alias de nossa realidade humana, tem seus prós e contras, nos prós podemos colocar a frase que a maioria de nós já deve ter ouvido: “não deixe para amanhã o que pode fazer hoje”! O problema se instala quando esta afirmação é aplicada a todas as realidades da vida. Quando esta visão se aplica a sexualidade, as festas. Somos treinados a fugir do sofrimento, a não fazermos mais projeções nem de nossa própria vida. Queremos tudo para agora, esquecemos que todo ato tem consequências. Basta vermos jovens e mais jovens que morrem por overdose, pois quererem beber ou cheirar o máximo possível, para curtir ainda mais o momento; a liberdade sexual, sem compromisso, como se não houvesse consequências, desencadeando gravidez precoce, aborto, traumas. São muitos os casos que poderíamos aqui relatar, mas não é essa nossa intenção.

A misericórdia é a resposta de Deus para as inquietações que ressoam no tempo presente, com tanta injustiça, tanto morte, tanto sofrimento. Como maestria Pe. Raniero expressa à ininterrupta relação entre justiça e misericórdia:

“É hora de perceber que o oposto da misericórdia não é a justiça, mas a vingança. Jesus não opôs a misericórdia à justiça, mas à lei de talião: “olho por olho, dente por dente”. Perdoando os pecados, Deus não renuncia à justiça, mas à vingança; Ele não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva (cf. Ez 18, 23). Jesus Cristo, na cruz, não pediu ao Pai que vingasse a sua causa; pediu-lhe que perdoasse os seus algozes […] Há somente uma coisa que realmente pode salvar o mundo: a misericórdia! A misericórdia de Deus pelos homens e dos homens entre si. Ela pode salvar, em particular, a coisa mais preciosa e mais frágil que há no mundo neste momento: o matrimônio e a família” (Sermão da sexta-feira santa de 2016).

Pensemos: como vamos construir um mundo melhor se só pensamos no agora, no hoje? Basta olharmos para a gritante realidade ecológica em que vivemos. Se não agirmos como pessoas que pensam no amanhã, que refletem sobre o risco de nossos filhos e netos só poderem contemplar a beleza da natureza com sua fauna e flora em livros de história, o que lhes restará serão fotos e vídeos de um passado que já não existe mais.

Ao dizer “felizes os misericordiosos”, Jesus não está se referindo a sentimentos ou momentos de misericórdia, mas há um estilo de vida. Misericórdia deve se tornar um hábito em nossas vidas, ela faz parte de nossa identidade de cristãos. O mundo anseia por um amor que seja puro, que não lhes cobre nada em troca, esse amor só é possível quando brota em Deus (I Jo 4,8), ou nos deixamos conduzir por este amor misericordioso ou nos aguarda um futuro tenebroso. Longe de Deus o homem tende a produzir o seu pior.

A sabedoria de Israel expressa no livro de Eclesiastes demonstra claramente como devemos alertar os jovens. “Jovem, alegra-te na tua mocidade! Sê feliz o teu coração nos dias da tua juventude. Segue os caminhos que o teu coração indicar e todos os desejos dos teus olhos; saibas, contudo, que tudo quanto fizeres passará pelo julgamento de Deus” (11,9). Tendenciosamente, por vezes, acabamos por interpretar o texto na ótica da castração, da privação, mas ao contrário, tal sabedoria prima pelo sentido da vida, mas que pelo juízo da mesma, vejamos como o texto nos permite compreendê-lo nele mesmo: “Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que cheguem os dias difíceis e se aproximem os dias da velhice em que dirás: Não tenho mais satisfação em meus dias”! (12,1).

A misericórdia se compreende na ótica do sentido da vida, nela podemos aplicar o famoso “por que” e “como”: “quem tem por que viver pode suportar qualquer como viver”. Que descubramos na experiência do amor de Deus o sentido de nossas vidas e dessa forma preencheremos a vida de nossos irmãos desse verdadeiro sentido.

“Todos somos chamados a viver de misericórdia, porque conosco, em primeiro lugar, foi usada a misericórdia.” (Papa Francisco).

Autor: Carlinhos Faria – Teólogo – Membro da Comunidade Javé Nissi

Comunidade Javé Nissi

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