O Estado e a vida humana

O Estado e a vida humana

Desculpem-me o texto um pouco longo. Mas o assunto exige.

O caso do bebê inglês Charlie Gard chamou grande atenção nessas últimas semanas de todo o mundo e repercutiu muito nas redes sociais, gerando intensa comoção internacional.

Dois meses após seu nascimento (em agosto de 2016) o pequeno Charlie precisou ser internado, onde permanece desde então, no Hospital Great Ormond Street, em Londres, sofrendo de uma raríssima e incurável doença: a síndrome de miopatia mitocondrial.

O serviço de saúde pública do Reino Unido afirmou que Charlie tem danos cerebrais irreversíveis, que ele não se move, não escuta, não enxerga. Some-se a isso, seu quadro é agravado por problemas no coração, fígado, rins, e seus pulmões funcionam apenas com ajuda de aparelhos. O hospital em que ele está internado solicitou e recebeu a aprovação de todas as instâncias jurídicas do Reino Unido para que os aparelhos que o mantém vivo, sejam desligados. Os médicos argumentam que prolongar a vida de Charlie artificialmente só amplia o sofrimento a todos e, em especial, ao próprio bebê.

Obviamente que seus pais, mesmo diante desse quadro gravíssimo, querem continuar tentando e lutando por sua vida. Eles buscam apoio para transferi-lo para outro hospital ou até mesmo para sua casa, e para que ele tenha acesso a uma terapia “experimental” que estaria disponível nos Estados Unidos.

Contudo, no dia 27 de junho, eles perderam a última instância do pedido que fizeram na justiça britânica. Até a Corte Europeia de Direitos Humanos concluiu que o tratamento “causaria danos significativos a Charlie”, e orientou pelo desligamento dos aparelhos.

O que chama atenção neste caso é que, ao contrário da vontade dos próprios pais, o Estado inglês decidiu que não se deve mais estender a vida de Charlie. A Suprema Corte inglesa decidiu contra a vontade dos pais, acreditando que o melhor para Charlie “é que ele possa morrer com dignidade”.

Isso nos leva a entender que a vida humana, independente de seu estado, condição, ou tempo perdeu o seu valor fundamental. Parece que a vida humana tornou-se relativa, que não se considera mais seu valor sagrado. Não se entende a vida como o primeiro de todos os valores ou direitos inalienáveis pelos quais o Estado deveria zelar. Parece que a vida tornou-se um bem qualquer, descartável, e sujeito às conveniências.

E diante disso, como cristãos nós podemos nos perguntar: o Estado tem o direito de tomar tal decisão, mesmo contra a vontade dos próprios pais? O Estado tem o direito de decidir quem deve viver ou quem deve morrer? Não seria essa decisão uma eutanásia de Estado?

Lembremo-nos que o Estado existe para a sociedade, e não a sociedade para o Estado. Ele é fruto da autoridade que lhe é garantida pelos cidadãos. É isso que ensinava o filósofo Jean Jacques Rousseau: “o poder do Estado não está nele mesmo, mas emana do povo”.

Portanto, como qualquer outra instituição social, o Estado não é capaz de criar os valores a partir de si mesmo. Ele resulta desses valores. E um desses valores que regem a humanidade é a própria vida humana em si. Ela deve ser tratada como um bem superior aos demais, e um direito fundamental a ser zelado, defendido e garantido pelo Estado. Pois o “inalienável direito a vida, por parte de todo o individuo humano inocente, é um elemento constitutivo da sociedade civil e da sua legislação” (CIC 2273).

Assim nos ensina o Magistério da Igreja: “Os direitos inalienáveis da pessoa deverão ser reconhecidos e respeitados pela sociedade civil e pela autoridade política. Os direitos do homem não dependem nem dos indivíduos, nem dos pais, nem mesmo representam uma concessão da sociedade e do Estado. Pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa, em razão do ato criador que lhe deu origem. Entre estes direitos fundamentais deve aplicar-se o direito à vida e à integridade física de todo ser humano, desde a concepção até a morte” (cf. Donum vitae 3).

Esse é o papel do Estado ante a vida! Zelar por ela e garanti-la.

E o que é a vida humana senão o mais profundo dom de Deus! Ele é o autor da vida! Só Deus pode dá-la. Só Ele pode criá-la!

Portanto, a vida tem em si um valor sagrado. E desde sempre as Escrituras expressaram a sacralidade da vida humana fundamentando-a em Deus e em sua ação criadora: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher Ele os criou” (Gn 1, 27). Não só o criou à sua imagem como assumiu a vida humana em si na Encarnação do Verbo. Por isso, grande é o valor da vida humana! Por isso “a glória de Deus é o homem vivo” (Santo Irineu).

A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura D’ele, participação de seu sopro vital” (cf. João Paulo II in Evangelium Vitae). Portanto, a vida (e a morte) do homem estão nas mãos de Deus. “Ele tem em suas mãos a alma de todo ser vivente e o sopro de vida de todos os homens (Jó 12,10)”. Assim, não se pode considerar o homem como um ser qualquer. Deus o fez maior que todas as outras obras de sua criação.

Desse modo a vida deve ser defendida em todas as suas instâncias. Ela não pode ser relativizada ou diminuída. Vida humana é vida humana, não importa em que condição esteja, se com poucas semanas ou dias de gestação, se recém-nascido, ou se num estado terminal.

A vida humana não pode ficar à mercê dos legisladores e magistrados que teorizam o que é a vida e quem tem ou não direito de vivê-la, pois “ninguém em circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir diretamente um ser humano inocente” (cf. Instrução sobre o respeito à vida humana Donum Vitae).

A vida do homem é determinada por Deus, em seu amor e mistério. Toda vida humana, independente das condições é vida em potencial, pois ali existe uma pessoa humana, um indivíduo, dotado de alma, que contém em si a centelha da criação, visto que o ser humano é objeto de um terno, eterno e intenso amor da parte de Deus.

 

Autor: Marcos Henrique dos Reis – Marcão – Comunidade Javé Nissi

Comunidade Javé Nissi

Deixe seu comentário
Captcha Clique na imagem para atualizar o captcha..