Eclesiologia – A unidade na Igreja
- Igreja e profecia
Antes de abordar diretamente a questão da unidade da Igreja, é necessário discernir o sentido fundamental da sua apostolicidade.
A Igreja, iniciada com os apóstolos, é uma instituição nascida de Jesus, ou seja, a partir de sua vida e de sua missão, cujo sentido, cuja força e cujo Espírito penetraram e se revelaram plenamente aos seus discípulos com a sua morte e ressurreição.
É por isso que a Igreja se concebe como apostólica, enquanto é fiel às suas origens, e como santa, porque o Espírito de Jesus, nela presente, garante esta fidelidade, não obstante as suas tentações e desvios. A Igreja é santa à medida que, dócil ao Espírito de Deus, é fiel às suas origens. E esta fidelidade às suas origens deve ser entendida, não apenas em termos de doutrina, o que seria uma distorção, uma infidelidade. Portanto, a Igreja é santa na medida em que é apostólica. E quem garante isto é a presença do Espírito.
O profetismo, como aspecto carismático, da Igreja é que garante a sua apostolicidade e conseqüentemente a sua santidade, porque por ele (em sentido amplo ou restrito) a Igreja é constantemente chamada à fidelidade, à conversão, a abandonar os ídolos, a resistir à tentação do poder, a voltar-se para Jesus, cuja prática, transmitida pelos apóstolos, é o seu fundamento e a sua orientação.
Não se trata de fidelidade à prática dos apóstolos, enquanto tal, mas enquanto nos transmite a prática de Jesus, que são os seus gestos, palavras e atitudes, no contexto histórico de sua época, e que nos indicam como ele concebeu a sua missão.
Assim, a prática de Jesus nos é transmitida através do Novo Testamento, onde ela nos é apresentada como foi vista e interpretada pelas primitivas comunidades apostólicas. Esta transmissão tem para nos um valor normativo essencial, enquanto nos põe em contato com a prática de Jesus, mas tem também valor relativo, enquanto exprime visão a partir de realidade particular e de determinada consciência histórica.
Também lemos o Novo Testamento a partir de nossa realidade, de nossa experiência de fé e com o nível de consciência que hoje temos das questões humanas e dos problemas sociais. Em outras palavras, ao receber a tradição apostólica, não se pode prescindir do fator mais importante, que é a sensibilidade ao Espírito de Deus, o qual se revela no confronto entre a prática de Jesus, como aparece no Novo Testamento, e a realidade concreta dos homens em cada época.
Feitas estas considerações, como entender a unidade da lgreja? A Igreja é constituida de várias comunidades – igrejas. Ela é una, na medida em que cada uma dessas comunidades conserva a apostolicidade, ou seja, é fiel à prática de Jesus, transmitida pelos apóstolos. Não são muitas igrejas, mas uma só, enquanto em cada uma delas se realiza a mesma Igreja, nascida de Jesus e iniciada pelos apóstolos.
Pelo fato de que a Igreja é uma comunidade de homens, a sua unidade não pode significar uniformidade. Toda tentativa, explícita ou velada, de uniformizar a Igreja é uma evidente distorção.
- A Apostolicidade e o ministério episcopal
A Igreja romana, quando trata da apostolicidade, tem insistido no papel do ministério episcopal de garantir, autenticamente, na Igreja, a fidelidade à tradicão apostôlica. Não se pode, porém, tomar essa missão como algo mecânico ou puramente institucional. Ela é também necessariamente carismàtica e só se compreende quando situada adequadamente em relação com o mistério interior da Igreja, que é uma comunidade agraciada com o selo do Espírito de Jesus e, por isso, essencialmente profética. Não é por mero acaso que o Concilio Vaticano II, ao falar do serviço episcopal, define-o como missão, cujos portadores são confortados pela força do Espírito Santo, como o foram também os apóstolos, em vista de serem “testemunhas” até os confins da terra diante das gentes, dos povos e dos reis (cf. At 1,8;2,lss;9,15)” (Lumen Gentium III, 24).
E, ainda, que “entre as principais tarefas dos bispos, a primeira é a de proclamar o evangelho” (Lumen Gentium III, 25), convocando os homens a se transformarem, pela força que vem do Espírito, em fiéis, e ccnfirmando-os nesta fidelidade (ci. Christus Dominus 11,12). Parece, então, oportuno observar que os bispos exercem a missão de garantir a apostolicidade da Igreja, na medida que eles próprios são fiéis (testemunhas) e se deixam guiar pela Espírito para confirmar os seus irmãos na fé apostólica, ou seja, na medida que estão animados pela Espírito de profeta, no sentido acima indicado.
Tal missão não se pode entender como algo acima ou desligado da própria missão da comunidade eclesial. Em outras palavras, a garantia da apostolicidade depende de todos os membros da Igreja, ministros ou não, na medida que cada um exerce a sua função em fidelidade ao Espírito de Jesus.
- Unidade e pluralismo
A instituição eclesial é um conjunto de comunidades unidas pela fé em Jesus Cristo e pelo empenho de continuar entre os homens a sua missão, transmitida pelos apóstolos. Mas não é apenas isto. Pode ter sido assim, no início. Dada a sua evolução histórica, a estrutura da Igreja hoje não se reduz a um conjunto de comunidades, com os seus instrumentos específicos de organização e vida comunitária. Existem as dioceses territoriais, as paróquias, os colégios católicos, os programas radiofônicos e de televisão, a imprensa católica, as publicações, os congressos, as reuniões de bispos, do clero, de agentes de pastoral, as assembléias gerais de pastoral diocesana, os movimentos leigos etc.
Tudo isso transpõe os limites das comunidades propriamente ditas, e possibilita, bem ou mal, a existência de cristãos, que não fazem parte de nenhuma comunidade em sentido estrito, mas, usando com discernimento os meios acima referidos, estão inseridos na comunhão eclesial.
Obviamente, permanece sempre a exigência de integração numa comunidade concreta. E são muitos os que tentam formas de comunhão fraterna intermediárias, que não são nem do tipo estritamente comunitàrio nem do tipo simplesmente societário. O fato é que a estrutura eclesial vai além do conjunto das comunidades propriamente ditas, e a questão da unidade se coloca não apenas para estas e para os seus membros, mas também para os demais cristãos.
E o que faz a unidade da Igreja? Quem desses cristãos e dessas comunidades está unido ou separado, pertence ou não pertence à Igreja? Ora, se existem, entre os cristãos e as comunidades, diferentes manifestações de fé, de prática cristã e de organização eclesial, como entender que pertençam à mesma Igreja?
a) O critério jurídico
Uma saída seria o critério jurídico. Pertenceriam à Igreja os que professam a mesma fé, recebem os mesmos sacramentos e submetem-se aos legítimos pastores. Mas, se a profissão de fé é a mesma, a prática da fé pode ser diferente, o que indica que a concepção de fé é diversa. E como os sacramentos da Igreja são sacramentos da fé, ou seja, não são meros ritos externos, mas expressão da fé dos cristãos, o que se disse da fé pode-se dizer dos sacramentos. Quanto à obediência aos legítimos pastores, vale lembrar que, no século XIII, o eremita Pedro Celestino, que fora papa e renunciara ao papado, foi posto na prisão pelo seu sucessor, Bonifácio VIII, porque não queria obedecer-lhe. E, apenas 18 anos depois, foi canonizado pelo papa Clemente V, entre outras razões, por ter sido fiel a Deus, pagando essa fidelidade com a prisão e a morte.
Como a Igreja não é apenas uma instituição jurídica, o critério jurídico não é suficiente para explicar a unidade. Restringir-se ao critério jurídico é esvaziar o evangelho. Excluir o critério jurídico é fazer da Igreja uma realidade não humana. É necessàrio estabelecer um critério e um princípio de unidade, que inclusive julgue e dê sentido ao critério jurídico.
b) O fundamento é Jesus Cristo
São Paulo diz que , “quanto ao fundamento ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo” (1Cor 3,l’I). Pertencem, pois, à Igreja e a ela estão unidos aqueles cristãos e aquelas comunidades, cujas concepções da fé, da prática e da organização eclesiais refletem uma fidelidade à missão de Jesus, transmitida pelas primitivas comunidades apostólicas.
Portanto, numa primeira aproximação, podemos dizer: estão unidos na medida em que são fiéis. Isto ficará mais claro, se considerarmos mais atentamente a natureza da unidade eclesial.