Espiritualidade e contemporaneidade
O quadro que nos é apresentado, escândalos e violências, propostas de desfazimento da família, desvios de verbas destinadas à saúde e educação, etc. obriga-me a refletir sobre a espiritualidade cristã. Preocupa-me a apatia espiritual em que vive a maioria dos cristãos; preocupa-me a falta de integridade e coerência, entre as convicções e a vida, a distância entre a teologia e a oração, e a omissão ao chamado de Cristo para amar a Deus com a mente e o coração. Vivemos numa época de mudanças acentuadas e muitos cristãos vivem incertezas no pensar, no julgar, no sentir e mais ainda, no agir. Incertezas que atingem até os critérios fundamentais da fé cristã e produzem fortes abalos sendo imperioso recomeçar a partir dos primeiros passos, a partir de Jesus Cristo, de sua palavra e da sua comunidade de fé. Este é um grande desafio para nós cristãos do século 21.
Espiritualidade é o jeito como vivemos… e espiritualidade cristã é viver inspirado pela experiência de Deus, pela revelação cristã, especialmente pelos valores do Evangelho e pelo seguimento da pessoa de Jesus Cristo que dá a inspiração ao que somos e fazemos: orienta o nosso agir, ajuda a discernir nosso sentir e ilumina as nossas decisões com valores específicos.
Espiritualidade é essencialmente experiência: experiência de Deus, feita por pessoas. Experiência de um Deus pessoal, revelado em plenitude na pessoa de Jesus Cristo, feita por pessoas situadas culturalmente. Essa experiência inspira um jeito próprio de cada um se relacionar consigo mesmo, com os outros – tanto ao nível das relações interpessoais como ao nível da organização social, com a Natureza e com Deus. Assim a espiritualidade se torna vital, experiencial, integral e integradora da totalidade do ser pessoa. Identifica-se com o jeito de viver, com um estilo de viva, com um modo de ser – um modo de sentir, pensar e agir, um jeito de se relacionar, de tomar decisões e de trabalhar na transformação da realidade.
Há três dimensões essenciais da pessoa: a emocional, a racional e a da ação. A espiritualidade precisa “encarnar-se” nestas três dimensões, para que seja experiência autêntica e vital. O específico do cristianismo, como espiritualidade, é o valor que o Evangelho coloca na vivência de cada uma destas relações. O essencial da revelação cristã não é um conjunto de valores ou de normas… mas é essencialmente uma Pessoa: Jesus Cristo. O seguimento desta Pessoa constitui o cerne específico do cristianismo.
Num mundo em que parece prevalecer uma cultura de morte, os desafios para a vivência da espiritualidade cristã são realmente gigantescos e exigem que se estabeleça claramente o conteúdo básico da experiência cristã para os dias atuais. Trata-se, fundamentalmente, de acolher a Palavra viva de Deus, com um coração aberto; de acolher, agradecidos, o amor incondicional de Deus; de acolher o grande Dom que é o Espírito Santo… Acolher, receber, deixar-se tocar por Deus, desconcertante e imprevisível, dado que é Amor.
O cristianismo, como estilo de vida, exige o discernimento e a audácia de se deixar conduzir pelo Espírito, o mesmo Espírito que guiou Jesus Cristo em seu ministério salvífico. Considerando o “fundamento cultural” da contemporaneidade, é indispensável esse discernimento para o cristão saber se movimentar, a partir dos valores evangélicos.
Na medida em que o dom de Deus, o Espírito de Deus, é acolhido pela pessoa, vai-se desenvolvendo nela a existência cristã. A atuação do Espírito Santo instaura na pessoa que o acolhe um dinamismo renovador que transforma o “velho” em “novo” e capacita para a prática do amor até aos inimigos (Mt 5,44) e do serviço concreto. Quer dizer, impulsionados pelo amor gratuito de Deus, vamos sendo capazes de aprender a “pagar o mal com o bem”, sem alienação ou utopia.
O ponto de partida da espiritualidade cristã é o encontro com a pessoa de Jesus cristo. Ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Por isso, toda espiritualidade fundamenta-se na opção e na pratica de Jesus. Assim alicerçada no Cristo ressuscitado, a vida do cristão faz dele uma nova criatura, sinal visível do amor de Deus no mundo. Somos transformados de tal maneira que, apesar das dificuldades e dos problemas possíveis em nossa historia de vida, passamos a ver o mundo e as pessoas com olhos de Deus, isto é, com bondade, gratidão, compaixão e misericórdia.
O discipulado e o seguimento de Jesus são os elementos centrais da espiritualidade cristã. Ou seja, o cristianismo radical que o mundo necessita. “A adesão à pessoa de Jesus Cristo está vinculada ao seguimento. Seguir não é ir atrás de Jesus, como passíveis expectadores, permanecendo em estado de indolência, apenas como objeto de uma ação apática em que somente um é o sujeito. Seguimento pressupõe relação, envolvimento, encanto e paixão.”[1]
[1]RUBIO, Afonso Garcia; AMADO, Joel Portella. (Orgs) Espiritualidade Cristã em tempos de mudança: contribuições teológico-pastorais. Petrópolis. RJ: Vozes, 2009.