O sentido da Quaresma
Procuremos recuperar o autêntico sentido da Quaresma, como itinerário de renovação batismal, proposto cada ano pela Igreja em sua liturgia. Quaresma é um tempo de conversão ao Evangelho, de toda a Igreja. Quer dizer: Cristo volta a ser “Boa nova” para os cristãos. Recolocar Cristo no centro da vida; e, a partir de Cristo, iluminar o sentido de tudo e acrescentar a fé como resposta ao Deus vivo, que em Cristo nos convoca para uma missão salvífica.
A Quaresma envia-nos ao âmago da mensagem evangelizadora: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (quarta-feira de cinzas). A conversão: do secularismo e relativismo da mente e do coração, que tira Jesus do centro da vida; da injustiça e indiferença com o próximo para o amor fraterno.
A Quaresma de Jesus é modelo da nossa; para ele o principal é o caminho para a Páscoa, para a nova e eterna Aliança em seu sangue. As tentações no deserto são como que uma antecipação ou o começo das tentações sofridas por Jesus ao longo de toda a sua vida pública, até o Jardim das Oliveiras. Por diversas vezes, até o fim, em suas longas horas de oração, aquele que encabeça a caminhada da nova humanidade submeteu ao juízo purificador do Pai cada passo, cada decisão, superando sempre a tentação de abandonar o caminho do serviço humilde, da fraqueza, do sofrimento, e reafirmando o projeto divino sobre sua vida.
Assim preparou o povo para uma resposta de fé, retificadora de caminhos; em virtude de seu sangue purificador, o pacto de amizade selar-se-ia em cada um por meio de um batismo. “É o compromisso com Deus de uma consciência pura pela ressurreição de Jesus Cristo”.
E sua fidelidade até a morte apoia-se nossa própria fidelidade; em seu triunfo, nosso triunfo. Sua graça é o poder de Deus, que vence em nossa fraqueza; é a presença do Reino abrindo passagem com o tempo, para introduzir-nos na eternidade; é o começo de nossa libertação integral em Cristo aprofundada numa conversão permanente.
A quaresma nos chama a reconciliação com Deus e para reconciliar-nos com Ele devemos fazer um exame de consciência. O tempo quaresmal quer “criticar” nosso caminho torto e provocar uma “crise” salutar, ainda que possa tornar-se custosa para nós e com uma cota de dor. Quer que em nós se separe o bem do mal, como o ouro das escórias. Quer fazer uma purificação, uma revivência batismal. Para isso. Deus quer tocar nosso lugar mais profundo, onde cada um é ele mesmo, ou foge de ser; e assim provocar a abertura da porta interior. “Chutar a porta”, diríamos vulgarmente…
“Deixai-vos reconciliar…” é uma expressão que sugere um consentimento ativo com uma ação de outro, mais do que uma imposição meramente voluntária. Uma recém-batizada escrevia depois de seu batismo: “Ontem eu me dizia, depois deste passo tudo mudará. Nada mudou, a não ser este poder que sempre esteve em mim, mas com o qual é preciso consentir. Nada mudou, mas Deus pode mudar tudo em mim se eu consentir”.
Este consentimento, fiel à fidelidade amorosa que nos julga, se expressa nas práticas quaresmais simbolizadas numa abrangente expressão: “jejum”. Jejum é privar-se de comida ou renunciar a determinadas “criaturas”, agradáveis, atraentes, para afirmar a supremacia do amor ao Senhor sobre todas as coisas. É afirmar um domínio sobre tudo o que é criado, sem deixar-se dominar por nada. Cada pessoa deve encontrar, em sua quaresma pessoal, seu próprio jejum, conforme onde lhe aperte o sapato.
O jejum abre o coração e o faz voltar também para Deus, a partir do apego às coisas, questionado e superado. Assim se entra no caminho da oração. Cada um deve encontrar seu modo de enriquecer e aprofundar o jejum, conforme sua experiência, especialmente abrindo-se a “toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4).
Em tudo deve prevalecer a consciência de que Deus quer realizar sempre em nós um julgamento de conversão, para uma aliança de amor cada vez mais plena. Isto supõe uma história, um processo, como sempre acontece no amor.
Autor: Tácito Coutinho – Tatá – Moderador do Conselho da Comunidade Javé Nissi