Uma definição de Carismas
Uma definição de carismas
Dom Alberto Maria Monléon, op A experiência dos carismas, 1982
“A cada um é dada a manifestação do Espírito para o bem comum (1Cor 12,7). Esta palavra de São Paulo é particularmente esclarecedora para uma teologia dos carismas. Será também à luz de cada um dos termos daquele versículo, que iremos lembrar o que é carisma.
- A cada um
Posto em relevo no início da frase, o pronome ekastos conota, acima de tudo, a idéia do caráter único e singular dos dons da graça. “Cada um recebe de Deus um carisma particular, um este, outro aquele” (1 Cor 7,7) (l í). A palavra evoca, igualmente, a gratuidade do dom assim concedido pelo Espírito Santo. É com soberana liberdade que o “Espírito distribui seus dons a cada um em particular, segundo ele quer”, (1Cor 12,11; cf. Rm 12,6; Hb 2.4). Literalmente “ele divide”, “ele distribui”. É a mesma idéia da distribuição a cada um lembrada em Pentecostes; “então lhes apareceram como línguas de fogo que se distribuíam sobre cada um deles” (At 2,3).
Assim, o Espírito Santo vai suscitar no seio do povo de Deus uma incomparável profusão de vocações e serviços, de carismas,, de “operações”, cada fiel recebendo, por sua vez, para contribuir para a vida e a unidade do conjunto. “Vós sóis membros do corpo, cada um por sua parte” (1Cor 12,27). Porque ekastos lembra, igualmente, a idéia da participação no bem comum e na unidade do corpo inteiro. A expressão “a cada um” orienta sempre para o crescimento do Corpo de Cristo. “Que cada um de nós procure agradar o próximo em vista do bem, para edificar” (Rm 15,2). Encontramos neste versículo estrutura análoga à de 1Cor 12,7, onde ekastos do começo reporta-se ao bem comum do fim que lhe corresponde. Com efeito, embora manifestando o caráter singular dos carismas, o Apóstolo certamente não estimula os coríntios ao individualismo.
A poderosa energia do Espírito de amor assegura a unidade do Corpo eclesial no exato momento em que estabelece cada um de seus membros na singularidade de suas graças. “Ele, que conhece toda palavra, mantém tudo na unidade” (SI 1,7). O mesmo e único Espírito se distribui sem dividir-se e une seres distintos em uma só comunhão. É o mesmo Espírito que é origem de unidade dos carismas em sua diversidade (1Cor 12,11) e princípio de unidade do Corpo de Cristo (1Cor 12,13).
Todo esse ensinamento de Paulo sobre a unidade da graça multiplamente refletida nos dons espirituais de cada um, vamos encontrá-lo praticamente idêntico, em 1Pd 4,10: “Cada um de vós, segundo o carisma recebido, consagrai-vos ao serviço uns dos outros, como bons dispenseiros da multiforme, poikilé, graça de Deus”.
- O carisma é dado
O verbo didômi é de grande importância no vocabulário paulino, porque conota, quase sempre, o dom da graça da parte do Senhor (1Cor 3,5; R m 15,15; Ef 3,7; Cl 1,25, etc.) e especialmente o Espírito Santo “que nos foi dado” (Rm 5,5), ou ainda cujas garantias são dadas por Deus (2Cor 5,5). Em seguida, o dodotai do nosso versículo “revela um perene presente, ou seja, que a manifestação do Espírito não é dada apenas uma vez, mas sempre, sempre”.
Assinalemos que a particular gratuidade dos dons espirituais vem do fato de eles não dependerem do mérito ou da santidade pessoal, se bem que freqüentemente os manifeste. Os carismas são uma espécie de superabundância da graça pela qual Deus quer tornar os homens cooperadores de seu plano de salvação. Santo Tomás distingue a graça santificante, pela qual um homem é justificado e torna-se participante da natureza divina da graça grátis data, pela qual “um homem ajuda outro a voltar para Deus cooperando assim para sua justificação”.
A graça própria do carisma é cooperação para a acolhida e o crescimento da graça santificante. Ouvir uma profecia, por exemplo, ou um ensinamento inspirado, ser esclarecido por alguém que tem um carisma de discernimento, tudo isso’concorre para despertar ou reavivar a obra interior da graça (1Cor 14,25). Na manhã de Pentecostes, os ouvintes de Pedro tinham o “coração traspassado ao ouvir suas palavras” (At 2,37). A graça manifestada dos carismas não reside tanto na sua ostentação exterior — isso corre risco de ser ilusório ou passageiro – mas no seu poder de tocar os corações e os abrir para Deus. Naqueles que são seus beneficiários, os carismas vêm ao encontro de impulsos interiores do Espírito.
Certamente os carismas não conduzem â vida da graça, por si mesmos, aqueles que os recebem (nem os que, por outro lado, deles se beneficiam). Ademais, os ministérios são ordenados, antes de tudo, para a caridade. Plenitude e perfeição de tudo, a caridade fará desaparecer o que é imperfeito e transitório. Também em seguimento do Senhor (Mt 7,21—23) e São Paulo, os autores espirituais recomendam, com sabedoria, ninguém gloriar-se nos carismas, mas na caridade. No entretanto, a desconfiança com que, algumas vezes, os carismas são encarados resulta de uma identificação implícita e errônea entre vida mística e vida carismática (embora, naturalmente, não sejam estranhas uma a outra). Além disso, confundem-se muito facilmente as graças místicas e os fenômenos preternaturais que lhes são concomitantes. Os carismas, tanto quanto a vida espiritual, não são julgados pela levitação ou as visões, mas pelos seus próprios frutos.
Por conseqüência de tais confusões, somos levados, da mesma maneira, a estabelecer distinções e admitimos mesmo uma nada feliz, ao passarmos a falar de dons ordinários e de dons extraordinários. “Em geral essas distinções insatisfatórias tendem a desvalorizar o “ordinário” e a distorcer o “extraordinário”.
Enfim, a divisão dos dons em ordinários e extraordinários, não parece ter fundamento na Escritura e “jamais ocupou lugar na teologia dogmática católica, a despeito de ter aparecido nos escritos ascéticos após a Reforma”. Da mesma forma que os fenômenos extraordinários, não é possível ver muito bem, em que critérios poderia apoiar-se o julgamento do ordinário e do extraordinário. A vida divina na menor das crianças é um extraordinário mistério, enquanto que, inversamente, os milagres mais fabulosos parecem, por vezes, bem insignificantes.
Retornemos, porém, aos carismas enquanto dons gratuitos. Se bem que concedidos de maneira sempre renovada pelo Espírito Santo, não são os carismas uma disposição estável, uma graça que possuímos, um mistério que nos foi atribuído. São essencialmente impulsos passageiros, sempre novos, sempre gratuitos, ainda quando uma docilidade apurada pela experiência nos torna, por vezes, mais aptos a responder aos sopros do Espírito. A graça santificante, por sua vez, estabelece o homem em um ser novo, faz dele uma nova criatura e o inclina, de maneira estável, a ver desabrochar a vida divina em todas as virtualidades de sua pessoa.
Se é bom destacar, por esta forma, que o carisma é dado de maneira inteiramente gratuita e passageira, e registrar a diferença com a vida teologal, na qual a caridade constitui o primado absoluto, torna-se necessário notar, e isto de forma bastante clara, que não são heterogêneas essas duas dimensões da graça.
Acima de tudo é o mesmo Espírito que opera em ambos os estados. E depois, no exercício dos carismas é fundamental a vida de caridade, de que eles são como o brilho exterior, a manifestação sensível. Os santos eram grandes carismáticos por causa do abandono a Deus e da intensa vida de caridade que levavam.
De idêntica maneira haverá continuidade e harmonias profundas entre dons do Espírito Santo e carismas de discernimento, entre os dons de sabedoria ou de inteligência e as “palavras de sabedoria” ou de “conhecimento” (1Cor 12,8). Há evidente ligação entre os dons enquanto disposições sobrenaturais de docilidade aos impulsos do Espírito e a docilidade de escuta interior necessária ao exercício dos carismas. Isso porque parece evidente que a entrada no exercício regular dos carismas supõe, na vida do crente, um pórtico espiritual a ser ultrapassado, um crescimento na graça que tem o feitio de nova “missão” invisível do Espírito Santo.
Os carismas, dados pelo Espírito Santo, estão a serviço de sua ação nos crentes. Muito relativos em relação à vida teologal e completamente em segundo plano em relação ao primado da caridade, eles são, não obstante, servidores e instrumentos em todo o Corpo de Cristo. Voltaremos adiante, a essa dimensão do serviço para o bem de todos. Os carismas desempenham papel fundamental na vasta economia da caridade e pedem para ser vividos em seu movimento e para serem exercidos em plenitude.
- A manifestação do Espírito
O carisma é uma manifestação (phanerosis) do Espírito. Por meio do carisma o Espírito Santo ao mesmo tempo manifesta um dom de graça e manifesta-se a si mesmo, torna-se de certa forma visível; o Espírito se deixa ver naquele que ele ilumina. Ora, a obra do Espírito Santo é, acima de tudo, dar testemunho do Filho, glorificá-lo. Por conseqüência, os carismas, manifestações do Espírito deverão refletir algo da glória que brilha na face do Cristo.
O Espírito manifesta o Cristo. Em São Paulo o verbo phaneró e seus derivados são freqüentemente empregados para significar a vida divina comunicada, o mistério da graça revelado a criatura através de toda a Economia da Salvação (2Cor 2,14; 3,3; Rm 1,19; 3.21; 16.26; Cl 1,26, etc.). Essa manifestação que é essencialmente uma manifestação do Cristo, é uma iluminação. Ela é realizada no Espírito que manifesta glorifica em tudo O Filho, desde a Encarnação até a Ressurreição; da proclamação à face da terra, a exaltação no mais alto dos céus. “Seguramente é grande o mistério da piedade: ele foi manifestado na carne, justificado no Espírito, contemplado pelos anjos, proclamado aos gentios, acreditado no mundo, exaltado na glória”. (1Tm 3,16). A Manifestação em sua plenitude é o mistério do Cristo, na glória, à direita do Pai e no meio dos homens. O mistério escondido no seio do Pai desde o princípio é agora manifestado: “Cristo no meio de vós” (Cl 1,27). Ele o está pelo Espírito. Os céus se abrem e a glória do Filho aparece (Mt 3,16-17; At 7,55-56; Ap 4).
A manifestação da graça que é a revelação do Cristo realiza-se na pregação do Evangelho (Cl 4,4; Tm 1,10—11). É uma demonstração do Espírito e de força para dar testemunho do Senhor Jesus (At 1,18; 3,15— 16; 1Cor 14,25; Jo 15,26-27). Entre outras razões os carismas são dados para apoio desse testemunho do Evangelho (Hb 2,4). Enfim, é pelo Espírito Santo que a vida do Cristo é manifestada na própria carne mortal do crente (2Cor 3,3; 4,10-11; Rm 8,10-11; Cl 3,4). O Espírito paira sobre todo o Corpo do Cristo e é por ele que se ungem a Cabeça e cada um de seus membros.
A manifestação do Espírito completa-se assim através do véu da carne (Hb 10,20), quer dizer, através do que há de mais frágil, mais contingente, mais efêmero na criação (1Pd 1,24-25; Is 40,6—8). Importava lembrar tudo isso porque os carismas como manifestação do Espírito, participam dessa glorificação do Filho. É mesmo um dos critérios fundamentais de seu discernimento.
A riqueza do tema da phanerôsis em Paulo prova, assim, que não é por acaso que ele a associa ao carisma dom de graça que, em sua passageira fragilidade, reflete algo da presença do Espírito iluminando toda carne para fazê-la refletir a glória do Cristo.
Eis porque realçamos aqui o critério fundamental e último do discernimento dos carismas, qual seja a manifestação do Senhorio de Jesus (1Cor 12,3), do reconhecimento do Verbo encarnado. “Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne é de Deus; e todo espírito que não confessa Jesus não é de Deus” (Jo 4,2—3).
Os verdadeiros carismas se distinguem claramente de toda manifestação espiritualista ou esotérica. Eles não diminuem em nada o realismo da Encarnação nem a “linguagem da Cruz” (1Cor 1,18) e suas conseqüências para a vida crista”. Toda evasão espiritual, toda tendência a “um outro evangelho” (Gl 1,8) ou a formas variadas de gnose que se manifestam no exercício de fenômenos intitulados de “carismáticos” não realçariam seguramente o Espírito de Cristo, o Espírito de Verdade.
A luz desse realismo da Encarnação, é preciso repetir quanto o Espírito repousa sobre um corpo, sobre a carne do Salvador, sobre a Igreja, sobre os crentes. Por conseguinte, o exercício dos carismas lembrará sempre esse enraizamento da natureza humana. O Espírito Santo, para manifestar-se, utilizará todas as faculdades e recursos espirituais, psicológicos, afetivos, intelectuais do homem, de seus talentos, de sua cultura, de seu temperamento (22). Isaías não profetizava como Jeremias, nem este como Ezequiel. O que significa, entre outras conseqüências, que o exercício dos carismas terá mais ou menos grande transparência sob a ação do Espírito. Certas pessoas serão particularmente maleáveis, dóceis a seu sopro, outras, por si mesmas, mais resistentes.
Isso significa, igualmente, que haverá certas condições, certas circunstâncias mais ou menos favoráveis para o exercício dos carismas, que será possível nos revestirmos de certas disposições, que poderemos nos preparar para esse fim. Eliseu fez comparecer um músico para profetizar. “Enquanto o músico tocava, a mão do Senhor baixou sobre Eliseu”. (2Rs 3,15) Esse realismo da ação do Espírito, que se manifesta em uma “carne”, atesta, igualmente, que há um aprendizado no exercício dos carismas, um crescimento na docilidade à graça (Lc 1,40—52). Uma experiência adquirida torna o exercício de um carisma mais freqüente, mais regular, mais poderoso. Isso não significa torne-se o carisma uma faculdade que se desenvolve; ele é sempre um impulso passageiro do Espírito Santo, que supõe uma disponibilidade constante-mente alerta: “manhã após manhã ele desperta o meu ouvido para que eu ouça como discípulo” (Is 50,4). É essa disponibilidade que podemos adquirir.
Enfim, uma vez que eles servem para manifestação do Cristo, como iremos ver, para a construção de seu Corpo eclesial, os carismas tenderão a desaparecer quando chegar a plenitude do “Homem perfeito” (Ef 4,12—13), quando o Cristo for manifestado plenamente em si mesmo e no seu corpo. “Quando da revelação de sua glória” (1Pd 13; Cl 3,4) desaparecerão os carismas tal como se apaga a luz da lâmpada diante do sol que se levanta.
Votados a desaparecer, os carismas são concedidos nessa espera da Volta o Cristo. “Também não vos falte nenhum dom, a vós que esperais a Revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Cor 1,7). Nos carismas ouvimos o maranatha do Espírito e da Igreja. Quando o Corpo de Cristo, para edificação do qual eles contribuem, tiver atingido sua estatura plena, eles não terão mais razão de ser (Ef 4,4—16). Os carismas são, ao mesmo tempo, sinais do Reino já presente e marcos de espera de sua plena manifestação: “essa estrutura carismática fundamental tem, também, caráter transitório. Está, igualmente, submetida ao “imperfeito” desse tempo intermediário e será substituída pela plenitude da consumação: “Quando, pois, viver o que é perfeito, desaparecerá o que é imperfeito” (1 Cor 17,20).
- O Espírito se manifesta.
A phanerosis do Espírito pode ser entendida igualmente, como sendo a do próprio Espírito (“genitivo objetivo”). Por outro lado, é dessa forma que a Tradução Ecuménica da Bíblia traduziu 1Cor 12,7: “cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para o bem de todos”. Com efeito, manifestando a glória de Cristo, o Espírito a si mesmo se revela; “Ele se torna de certa forma visível através de sua ação na Igreja e em cada um daqueles que ele habita e inspira”.
No entretanto, os carismas são apenas a phanerosis do Espírito, sinais de sua presença, não o dom do próprio Espírito Santo, que é distinto de suas manifestações. Em todo o contexto de 1Cor 12,4—11, o Pneuma aparece muito claramente como pessoa e não como força impessoal.
Assim os carismas não constituem uma missão visível do Espírito, mas são uma continuação de Pentecostes. São uma espécie de permanência, na Igreja, da missão visível naquela ocasião. Daí não ser a caridade um carisma propriamente dito, ainda que fosse muito elevado, mas a “via mais excelente” (1Cor 12,31), o próprio amor de Deus espalhado nos corações pelo Espírito Santo que é dado (Rm 5,5). Presença pessoal do Espírito, a caridade é incomparavelmente superior aos carismas.
Através dos carismas o Espírito brilha com sua própria luz. Por isso, impedir os carismas é extinguir o Espírito (1Ts 5,19-20). Nos Atos dos Apóstolos, a indubitável presença do Espírito Santo nos fiéis é manifestada pelos carismas, em particular o dom das l ínguas e a profecia (At 2,33; 10,44-47; 19-6; 11,28). Realidades do Espírito os carismas ostentarão a marca de sua soberania, de sua verdade, de sua caridade. Epifania (manifestação) da presença do Espírito Santo, os carismas refletirão algo dos traços marcantes de sua personalidade e de sua maneira de agir. Não será possível assimilá-los muito rapidamente ou confundi-los com algum talento natural. Reconhecer a especificidade dos carismas é reconhecer a especificidade da ação do Espírito e não dissolvê-las nas formas de ação especificamente mundanas.
Tal como o Espírito Santo, os carismas terão algo de fortemente imperceptível em si mesmos, mas serão reconhecíveis pelos seus efeitos. Algumas vezes poderosos, outras suaves (1Rs 19,12), terão eles do Espírito Santo a irrupção vertiginosa e delicada, da qual não sabemos muito bem nem de onde vem nem para onde vai, embora seja perceptível. Surgirão eles como uma espécie de improviso, mas, ao mesmo tempo, como se tudo ocorresse ao fim de longa e oculta maturação, que imediatamente produz fruto, com sua própria evidência.
É interessante, mas sempre delicado, para não dizer impossível, analisar os mecanismos subjetivos dos carismas. Quais são os impulsos interiores daquele que profetiza? Seriam simples inspiração de tipo poético, emoção afetiva que o invadiu subitamente, intuição intelectual que o faz “ver” mais longe que os outros? Há de tudo isso nos carismas de profecia, mas se tentarmos reduzi-los a seu condicionamento psicológico, não mais perceberemos o essencial, que é esse ponto inacessível em que o Espírito se une ao nosso espírito. Esta comunhão, que não é nem fusão nem substituição, esse lugar onde a ação do Espírito escapa ao nosso controle e à nossa palavra. Esta inatingível passagem do Espírito mostra sua presença: certo sabor, certa doçura, uma espécie de emoção, uma insistente e frágil força, uma verdade simples e fugitiva que não pertencem senão a Ele.
Realidades do Espírito, somente no Espírito os carismas poderão ser verdadeiramente discernidos. “É espiritualmente que devem ser julgados” (1Cor 2,14). Muito freqüentemente os carismas deixam de ser reconhecidos, não porque sejam inautênticos, mas porque os encaramos com olhar muito humano: “o homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus” (1Cor 2,14). Aqui é ainda o Espírito de Deus que ilumina e identifica o traço de sua passagem. “Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus. Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons (charisthenta) da graça de Deus” (1Cor 2,11-1 2).
- Para o bem comum
Abordamos agora o último aspecto essencial da definição do carisma, isto é, que ele é dado para o bem comum, para o serviço e utilidade de todos; literalmente para sustentação mútua (prós to sumpheron).
Essa noção de utilidade comum inscreve-se no contexto do oikodomô, termo chave do vocabulário paulino e muito especialmente do capítulo 14 da Primeira Epístola aos Coríntios. Por outro lado, as duas noções são muito próximas e se completam. “Tudo é permitido, mas nem tudo é útil (sumpherei); tudo é permitido, mas nem tudo edifica” (oikodomei) (1Cor 10,23). Enquanto oikodomei parece sobrepor-se aos ministérios da palavra, a utilidade comum é uma noção mais geral, que poderá ser aplicada a todo carisma e até a toda atividade na Igreja.
Os dons espirituais em sua variedade não têm outro objetivo senão servir ao Corpo em sua unidade. É significativo que, nos três textos paulinos maiores, respeitantes á questão dos carismas (1 Cor 12,14; Rm 12,4-6; Ef 4,11—16) e sua missão na comunidade, o contexto é o da comparação com o corpo. Em sua diversidade, os dons espirituais colocam-se a serviço da unidade do corpo, do qual são como as junturas e os ligamentos, concedidos à vista da construção da comunidade eclesial, “segundo a operação de cada parte” (Ef 4,16). Eles permitem a cada um integrar-se no conjunto e o servir; levam todos a cooperar harmoniosamente na vida da Igreja. “Que permaneça íntegro esse corpo que formamos com Jesus Cristo. Que cada um respeite em seu próximo, o carisma por ele recebido” lembra, no fim do primeiro século, São Clemente de Roma aos coríntios.
Os dons espirituais contribuem, pois, para fazer dos batizados pedras vivas (1Pd 2,5), que se ajustam e se integram para os tornar habitação de Deus no Espírito (Ef 2,22). Daí porque os carismas são sempre dados em dependência uns dos outros, sempre correlativos em relação uns aos outros, exercidos na mútua submissão no interior da comunidade, “onde cada um cuida, não apenas de seus próprios interesses, mas também do dos outros” (Fl 2,4). Não há carisma que efetivamente não se apoie em outros carismas e outras funções na Igreja, com vistas à caridade. Esta é, antes de tudo, o fundamento da construção, é ela que constrói (1Cor 8,1), é o meio, a comunhão na qual o próprio corpo se edifica (Ef 4,16). A caridade, finalmente, é o fim último, “o lugar perfeito” (Cl 3,14), no qual se completa a plenitude do Corpo único.
Acontece, às vezes, que com base em 1 Cor 13, depreciamos os outros carismas em nome do primado da caridade. É esquecer o contexto no qual se insere o hino á caridade, a saber a seqüência dos capítulos 11 a 14. Há entre os coríntios divisões, falsa sabedoria, desejo de aparecer, desordens de toda a espécie, especialmente durante as assembléias. Também Paulo, naqueles capítulos, trata, antes de tudo, da Eucaristia (11,17— 34), em seguida da diversidade dos carismas a serviço do Corpo (cap. 12) da excelência da caridade (cap. 13) do exercício, enfim, dos carismas, para edificação da comunidade (cap. 14).
Este conjunto forma um todo. O que está em causa é o Corpo do Cristo. Corpo eucarístico e Corpo eclesial, sua unidade, sua vida orgânica, na, por e para a caridade em plenitude. O que se opõe à caridade não são os carismas como tais, mas seu uso desordenado e pretencioso. Sem a caridade não somente os carismas, mas nenhuma obra humana, por heróica que seja, pode ser útil (1Cor 13,3). Quando São Paulo escreve: “procurai a caridade, aspirai aos dons espirituais” (1Cor 14,1), provavelmente insinua que não é indiferente à caridade pretender alguém exprimir-se nos carismas. Sem os ministérios e os carismas, a Igreja seria uma justaposição de indivíduos, não o Corpo orgânico do Cristo “onde todos são membros, cada um por sua parte” (1Cor 12,—27), mas sem a caridade não seria o Corpo um organismo vivo. A caridade é a vida que o Espírito de Deus espalha através de todo o Corpo, nele se desdobra e se manifesta na infinita diversidade de seus dons: ministérios, carismas, operações e frutos.
Os carismas, na realidade, manifestações do Espírito, são manifestação da caridade, são como o desdobramento visível e a ressonância sensível em todo o Corpo. O Espírito de caridade leva os membros do Cristo a cumprirem em atos, realmente, até os mais humildes gestos salvíficos do Senhor. Depois de Jesus, os cristãos foram ungidos pelo Espírito de Deus para levar aos pobres a Boa Nova com todos qs gestos de salvação que a acompanham (Lc 4,18-19; Mt 15,30-31; At 10,36—38). Pelo Espírito Santo, a ação corporal de Jesus, que passou no meio de nós fazendo o bem (At 10,38), continua a fazer-se sentir no mundo. Os homens têm necessidade de perceber, de forma quase sensível, uma presença do Senhor. Para isso, os carismas, com os sacramentos, são o instrumento.
Uma comunidade sem carismas, seria algo como um corpo privado de sensibilidade. Se a caridade se situa incomparavelmente acima dos carismas, como a alma em relação aos sentidos, ela tem igualmente relacionamento profundo com eles. Os carismas são como sua expressão e sua manifestação na realidade corporal. Pelos carismas algo da manifestação da vida: “o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, contemplamos e tocamos com nossas mãos do Verbo da Vida” permanece sempre na Igreja.