O mal e a esperança cristã
Fernando Altemeyer Junior
Teólogo leigo, graduado em Filosofia e em Teologia, mestrado em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica de Louvain-La-Neuve, Bélgica.
Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC.
Professor do Departamento de Ciência da Religião, da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP
Canta o poeta: “Tristeza não tem fim/ Felicidade sim!”. E a estrofe segue melancólica: “A felicidade é como a pluma/ Que o vento vai levando pelo ar/ Voa tão leve/ Mas tem a vida breve/ Precisa que haja vento sem parar”. Sentimos isso dia a dia e o experimentamos como uma triste sina. No combate entre tristeza e alegria, parece que a vitória é do mal, que não tem fim. Mas por que assim é o nosso viver? Será correta a visão do filósofo alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) ao dizer que o mal só pode ser entendido a partir de três diferentes pontos de vista: o metafísico, por meio da imperfeição e dos defeitos que fazem parte de toda a criação e de nosso existir; o aspecto físico, natural e corporal, que se manifesta como dor, sofrimento e fragilidade patológica; ou a dimensão moral, que se apresenta como falha nas virtudes sob o nome de pecado, realizado contra nós mesmos, contra os outros e contra Deus? Essa é uma distinção clássica na filosofia, mas será que nos leva a compreender algo novo ou talvez só sejam palavras ao vento?
Canta o poeta: “Tristeza não tem fim/ Felicidade sim!”. E a estrofe segue melancólica: “A felicidade é como a pluma/ Que o vento vai levando pelo ar/ Voa tão leve/ Mas tem a vida breve/ Precisa que haja vento sem parar”. Sentimos isso dia a dia e o experimentamos como uma triste sina. No combate entre tristeza e alegria, parece que a vitória é do mal, que não tem fim. Mas por que assim é o nosso viver? Será correta a visão do filósofo alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) ao dizer que o mal só pode ser entendido a partir de três diferentes pontos de vista: o metafísico, por meio da imperfeição e dos defeitos que fazem parte de toda a criação e de nosso existir; o aspecto físico, natural e corporal, que se manifesta como dor, sofrimento e fragilidade patológica; ou a dimensão moral, que se apresenta como falha nas virtudes sob o nome de pecado, realizado contra nós mesmos, contra os outros e contra Deus? Essa é uma distinção clássica na filosofia, mas será que nos leva a compreender algo novo ou talvez só sejam palavras ao vento?
Ou estaria certo e convicto Santo Agostinho de Hipona (354-430) em dizer que o mal se identifica com o não ser, pois o bem é identificado claramente como a perfeição e a beleza. Assim, para o pensamento agostiniano, poderíamos conceber o enigma do mal em chave negativa, declarando que ele é sempre a ausência do ser e, portanto, uma realidade defeituosa. Isso permite valorizar a criação, a bondade divina e a ação do amor, mas talvez nos leve a novas perguntas ainda mais contundentes quando o inocente sofre e a fatalidade cai sobre nossas cabeças, como que nos submetendo a teologias do dolorismo, do sofrimento masoquista e, sobretudo, de um Deus ausente nas horas de conflito.
Ou será que não podemos definir o mal ainda que ele nos desafie e questione, mas precisemos enfrentá-lo como algo sem nome e sem rosto, sempre a nos machucar, diminuir ou reduzir a pó. A natureza é má, muitos homens são maus, e quem quer entender o mal sempre submerge em terras desconhecidas, escuras e incompreensíveis, pois, como diz o teólogo Andrés Torres Queiruga (1940-): “Não existe o problema do mal, somente muitos problemas, que se ocupam de muitos males”.1 Mas o caminho que assume o mal como um sem sentido, algo inexplicável, nos deixaria atônitos e calados. Calados demais e ficamos parecidos com mortos-vivos. Diz o salmista ao ver essa situação humana radical: “Esqueceram-me como se fosse um morto, tornei-me como um objeto abandonado” (Sl 31[30],13).
Precisamos de alguém que venha em nosso auxílio e diga-nos uma palavra diferente e carregada de sentido. Alguém que nos proteja do mal, guarde-nos de todo mal e acompanhe-nos na batalha contra o mal. Alguém como Deus. É isto o que os cristãos devem fazer ao enfrentarem o mal: não fazê-lo sozinhos, mas muito bem acompanhados por Deus mesmo. Pensar o mal, decifrar o enigma do mal a partir da presença de Deus como nosso advogado, nosso protetor e nosso irmão que ama e que salva e no Espírito que nos anima e fortalece. Não temos todas as respostas, mas com Jesus rezamos: “Por que me abandonaste?” Assim, a oração que fazemos na cruz e no abandono, “longe de ser uma expressão de incredulidade, é a forma mais pura da fé”.2
O primeiro lugar importante da manifestação de Deus em nosso favor é o corpo humano. Nele vivemos os momentos mais dramáticos do mal, da maldade e da moléstia que atinge nosso viver. Somos frágeis e marcados pelo padecimento, pelo desgaste físico e mental e, sobretudo, por uma vida nem sempre vivida no equilíbrio e na serenidade. Viver é duro e nosso corpo sofre muito. Sofrimentos que nos ensinam, mas também sofrimentos que não compreendemos nem aceitamos. O corpo sofre com a falta de amor, de alimento, de justiça e de dignidade ofendida. O corpo sofre com os excessos, de drogas, de tabaco, de álcool, de pesos, de trabalho, de palavras malditas, de violência sexual e pela tortura dos corpos humanos e de seu pensamento. Tudo o que é excessivo machuca o corpo: gordura demais, comida demais, suor demasiado, enfim, nosso corpo pode morrer de exaustão física e psíquica. Precisamos do equilíbrio e da serenidade, mas nem sempre sabemos encontrá-los. Vivemos em sociedade dos excessos e do hiperconsumo e poderíamos ser felizes com muito menos. Muito do que Deus pode fazer por nós está na encarnação de Seu Filho como ser humano, como um de nós, exceto no pecado. Ele veio viver como nós, sentir como nós, padecer como nós e, pela força da vida e do amor, resgatar-nos do lugar do mal pela força da verdade e de Sua fidelidade ao Pai.
Um segundo lugar assumido por Deus questão do mal é o tempo e a história. Deus enfrenta o mal em sua finitude e em seu limite, naquilo em que o mal quer nos apequenar. Ele propõe o infinito como um antídoto ao mal. Diante das concepções dualistas e cíclicas dos gregos que sempre sofriam o ódio e a vingança dos deuses do Olimpo, Deus, pai de Jesus, amou tanto o mundo e a humanidade que não pediu doze trabalhos fatalistas como o fez Zeus com Hércules, mas acompanha a luta de Jesus contra o mal e O fez vencedor pela ressurreição. Deus faz-se história descendo dos altos céus para nos fazer divinos e ressuscitados. Vive o tempo fazendo-o eterno. Abre a porta da eternidade para que vivamos com Ele para sempre. Ele nos quer em Seu regaço e por todo o sempre. Não tem ciúmes de nós, nem quer nos punir, como os gregos pensavam citando lendas como as de Sísifo, que rolava eternamente uma pedra, ou a de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e, por isso, tem o fígado devorado e restaurado em uma punição dos deuses contra a sagacidade do humano. O ciclo quebra-se com a visão judaico-cristã, e a história torna-se lugar de redenção. Não outra história ou história paralela. A mesma história humana é o lugar da história da Salvação. A mesma história dos povos é sacramento da ação maravilhosa de Deus. Quebra a espinha dorsal do mal pela esperança.
Sabemos, desde Platão (428-348), que o mal não procede de Deus e que os vícios são uma responsabilidade humana, pois possuímos o livre-arbítrio. Nessa luta histórica entre graça e liberdade, vive o humano e assumimos nossas respostas. Diante do mal físico e natural, nada podemos fazer se não aceitarmos e prevenirmos com a ciência que temos. Terremotos, tsunamis, cometas, meteoros são fatalidades do cosmos e da Terra que não pode ser vistas moralmente, mas objetivamente como limites no existir. Muito podemos fazer, mas não tudo. Como diz Paulo de Tarso (5-67) aos Romanos: “Pacientes na tribulação, perseverantes na oração” (cf. Rm 12,12). Outra é nossa postura quanto ao mal moral, pois sobre esse temos como decidir e discernir. Se podemos fazer o mal ou o bem, precisamos escolher. E assumir o ônus da escolha. E sermos julgados por isso. A música pode ser sinfônica se cada um de nós fizer sua parte e não criar acordes dissonantes e desumanos. Talvez possamos dizer, seguindo o teólogo Juan Luis Segundo (1925-1996), que “o mal esteja tranquilamente acomodado no propósito maior do Criador como estratégia para nos provocar a crescer e participar”.3
Alguns tentarão o caminho mais fácil dos neoplatônicos ou gnósticos, afirmando o mal nas coisas e na matéria. Sempre dirão que o mundo é cópia falsa, que o mal é sempre material, que o espiritual tudo salva e o que devemos fazer é sublimar e fugir deste mundo. Jesus Cristo propôs outro caminho: não condenar, mas propor vida ao mundo. “Pro vita mundi”, para a vida do mundo, e, como dizemos no Credo cristão, “por nós e por nossa salvação”, Deus fez-se homem no seio de Maria e habitou entre nós. Os cristãos veem na criação os sinais de Deus e acreditam que também o mundo geme clamando por redenção, como diz o apóstolo Paulo. Não somos tão pessimistas quanto Schopenhauer (1788-1860) ou Santo Agostinho, mas sabemos que sem o Cristo nada podemos. Não somos tão otimistas como Pelágio (350-423) ou Hegel (1770-1831), que creem no espírito do mundo e na força do humano, pois sabemos de nossas fraquezas e medos. Devemos ser plenamente realistas e buscar o caminho do meio. Kant (1724-1804) não é suficiente para enfrentar o mal, ainda que a ética seja ferramenta importante. Nietzsche (1844-1900) não consegue compreender Deus, por isso O nega. Não percebe a força do amor de um Deus crucificado. Deus não é o pai do mal nem seu sustentáculo. Ele é nosso aliado no enfrentamento do mal. Deus não nos faz impotentes, mas se torna nosso companheiro de estrada e de esperanças. Assim diz o salmista: “Vós contaste os passos da minha vida errante e recolhestes as minhas lágrimas” (Sl 56[55],9).
O derradeiro problema do mal reside no fato de que é apresentado ou transfigurado em algo banal. A filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) deixou o rei nu ao dizer que a banalidade do mal é o que devemos de fato enfrentar e assumir como projeto humano e compassivo. O mal precisa ter os véus retirados e, ao perder o efeito fantasmagórico e surreal, possibilitar que possamos chamar por seu nome. Quem enfrenta o mal é capaz de superá-lo, mesmo ficando com marcas e feridas. Tirar o mal do anonimato e das estruturas e nomeá-lo como feito por homens e mulheres é tarefa primordial. O mal não é produto de monstros, mas da perversão e de uma exclusão deliberada do bem e do amor. Nossa força está em Deus. Assim diz Jesus: “Eu vos dou o poder de calcar aos pés serpentes e escorpiões” (Lc 10,19a). A questão do mal sustenta muitos ateísmos e proclama sempre a ausência de Deus na salvação de Seus amados e do povo escolhido. Seria assim mesmo? Deus se cala? Ele se ausenta? É surdo? Não se mete na dor? Morreu? Assim diz duramente o salmista, querendo um sinal: “Despertai, Senhor. Por que dormis? Levantai-vos. Não nos rejeiteis para sempre” (Sl 44[43],24).
Interpelar Deus acusando-O de ser conivente com o mal deve incomodar os amigos de Deus. Precisamos convocar Jó, Jeremias, Sofonias, Amós, os Macabeus, o profeta João Batista e o próprio Jesus para serem nossas testemunhas e proclamarem a verdade sobre Deus em favor do sofredor, no enfrentamento da maldade e na esperança da vida plena. Assim sabemos dos profetas que pôr a culpa em Deus alivia a canseira humana, mas nada resolve da dor humana. Contra Deus e sem Ele, ficamos ainda mais frágeis e na orfandade. Nada ganhamos e tudo perdemos. Pensar o mal, retirando-o de Deus e aliviando a divindade de qualquer relação, pode salvar momentaneamente o mistério, mas nos remete a um beco sem saída. Se não foi Deus, ou se Ele é impassível, então por que sofremos desse jeito e Ele nos criou? Esse é o caminho fácil da apologética, mas sem resultado para quem sofre e tampouco para a imagem plena de Deus como amor. É muito falatório para nada. Se pensarmos que o mal é necessário, podemos ver algo sobre nossa finitude, bem como justificarmos nossa miséria e a própria inércia. Não há nada a ser feito! A paciência não pode ser assumida a priori. Deveria existir uma teimosia em quem sofre. Teimosia santa de quem sabe que Deus é bom e eterna é Sua misericórdia (cf. Sl 100[99],5). Assim diz o teólogo: “Desde as origens da humanidade, houve homens e mulheres tateando em busca da verdade e da justiça, enfrentando as potências adversas; homens e mulheres que sentiram a angústia e o peso do silêncio e da solidão, o abandono no meio da reprovação e da culpabilização, teimosos na esperança”.4
Se Deus é por nós e conosco enfrenta o mal, temos um amigo e uma força para seguir lutando e pelejando, sem entender todo o mistério da vida e do mal, mas certos de que Deus está conosco, para nos livrar de todo o mal, sem magia e sem ilusões, mas no enfrentamento e na experiência diária do viver. Chamado ou não, Deus estará sempre presente para quem ama e quer viver, para que “no dia da desgraça, me esconda em sua tenda” (Sl 27[26],5). É singular que o livro do Apocalipse apresente a Igreja lutando contra o império do mal, representada por uma mulher que protege seu Filho Amado. O mal é enfrentado pelo amor de uma mãe que cuida do fruto de seu útero e que acredita na força de Deus. O amor é mais forte que a morte. Ainda que o mal tente se camuflar e disfarçar, quem é discípulo de Jesus Cristo conhece seu Salvador e crê na verdade.
Assim age movido por Deus de dentro de seu coração. Impede a ação do demônio, pois este quer agir do exterior e manipular. Quem é de Deus sabe que Jesus Cristo age por dentro da pessoa. Quando o mal atinge um crente em Deus, este não deve praguejar nem perder a fé, mas buscar imediatamente a Deus, pois, como diz Santo Tomás de Aquino (1225-1274): “O fim do demônio é fazer a criatura racional voltar às costas para Deus”.5 Na hora da dor e da presença do mal, o cristão reza e confia: “Na minha aflição clamei ao Senhor, e Ele ouviu-me. Livrai-me, Senhor, dos lábios mentirosos, e da língua traiçoeira” (Sl 120[119],1-2).
Referências bibliográficas
- Repensar o mal: da ponerologia à teodiceia. São Paulo: Paulinas, 2011. 15.
- COMBLIM, José. A oração de Jesus. ed. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 48.
- SOARES, Afonso Maria Ligorio. De volta ao mistério da iniquidade. São Paulo: Paulinas, 2012. p. 234.
- ST III, q. 8, a. 7.
Publicado em 31/07/2017
Revista O Mensageiro de Santo Antônio – Edição Maio 2013