Entrevista com Von Balthazar – Igreja Hoje
Hans Urs Von Balthazar
Lucerna, 12 de agosto de 1905 — Basileia, 26 de junho de 1988
Sacerdote, teólogo e escritor suíço; considerado um dos mais importantes teólogos do século XX. Nas comemorações do centenário do nascimento, o seu amigo Joseph Ratzinger (papa Bento XVI) afirmou que “a sua vida foi uma genuína busca da verdade”, entendida como “busca da verdadeira vida”.
Não era doutorado em Teologia, mas sim em Literatura – tese em 1928: “A questão escatológica na atual literatura alemã”. A busca do divino manifesta-se em todo o lado.
Hans Urs von Balthasar nasceu em Lucerna em 1905. Estudou Germanísticas e Filosofia nas Universidades de Zurique, Viena e Berlim, e formou-se com uma tese sobre o problema escatológico na moderna literatura alemã. Entre 1932 e 1936 fez o currículo de Teologia. Em Basileia, onde se ocupa da pastoral no meio universitário, torna-se amigo do teólogo protestante Karl Barth, e conhece também, por essa altura, a mística Adrienne von Spyer, de quem foi espiritualmente próximo. Em torno à sua obra, original e intensa como poucas no século XX, manifestam-se primeiramente hesitações e reservas. Mas com o Concílio Vaticano II, do qual foi um importante inspirador mesmo se ausente, emerge como referência de primeiro plano no panorama teológico. O Papa João Paulo II nomeou-o cardeal e ele deveria receber as insígnias a 28 de Junho de 1988. Morreu dois dias antes
nasceu em Lucerna em 1905. Estudou Germanísticas e Filosofia nas Universidades de Zurique, Viena e Berlim, e formou-se com uma tese sobre o problema escatológico na moderna literatura alemã. Entre 1932 e 1936 fez o currículo de Teologia. Em Basileia, onde se ocupa da pastoral no meio universitário, torna-se amigo do teólogo protestante Karl Barth, e conhece também, por essa altura, a mística Adrienne von Spyer, de quem foi espiritualmente próximo. Em torno à sua obra, original e intensa como poucas no século XX, manifestam-se primeiramente hesitações e reservas. Mas com o Concílio Vaticano II, do qual foi um importante inspirador mesmo se ausente, emerge como referência de primeiro plano no panorama teológico. O Papa João Paulo II nomeou-o cardeal e ele deveria receber as insígnias a 28 de Junho de 1988. Morreu dois dias antes
A entrevista
Pouco se fala dela. Desaparecida há trinta anos, praticamente banida, mas republicada em 23/05/2014, pelo site PapalePapale.com, essa entrevista preciosa continua atualíssima.
“Eu peço que não faça de mim uma estrela”. Disse ao se despedir depois de uma longa conversa. “O que importa são os problemas, não a minha pessoa”. Realizamos mais do que o esperado. E com um toque que revela a sua atenção para com os outros, quer saber onde vamos almoçar, a fim de nos dar algumas indicações concretas. “Sugiro o restaurante da estação: tem bom preço e a comida não é ruim”. – H. Urs Von Balthazar
Alto, magro, austeramente trajado de preto, muito lúcido: aos 80 anos, o “grande homem da Basileia”, “o homem mais culto do século”, o autor de quase setenta livros que marcaram a fundo o nosso tempo (o recente Prêmio Paulo VI só o fez confirmar), Hans Urs von Balthasar, está mais ativo e presente do que nunca.
Para muitos, esse homem parece representar a síntese viva do que deveria ser um teólogo segundo o espírito do Vaticano II. Ainda assim, ele foi excluído dos trabalhos daquele Concílio para o qual havia contribuído profundamente, na construção de um clima favorável.
Mesmo na Roma do Papa João, desconfiavam dele, da sua abertura ao mundo e da atenção que dava aos sonhos do seu tempo. Somente em 1969 terminou o seu longo exílio “oficial” com a convocação — feita a ele por Paulo VI — para fazer parte da Comissão Teológica Internacional, que dava suporte à Congregação para a Doutrina da Fé. Pensador entre os mais modernos, inabalavelmente enraizado na grande tradição da Igreja, o destino de von Balthasar estava associado, em termos de odor “progressista”, a de outros grandes da teologia católica, de Maritain até seu amigo e mestre De Lubac, pelo menos até o Vaticano II. Mas, foi acusado de ter se tornado “moderado” depois do Concílio, conforme o grupo de interesse que estava a controlar e manipular as informações dentro da Igreja. No entanto, ninguém, nem antes nem depois, questionou sua estatura teológica e, sobretudo, espiritual, extraordinárias. Glória, sua obra principal, já está entre os clássicos, mas também é bem conhecido o seu envolvimento com a mística teórica e prática, na qual ele enxerga o cume da experiência religiosa.
Seu escritório é dominado por uma grande escultura em madeira da Virgem, e, logo acima da porta, foi colocada a trágica Crucificação de Grünewald, diante da qual Dostoiévski caiu em delírio epiléptico, talvez a imagem pictórica mais adequada para ilustrar o “Jesus estará em agonia até o fim do mundo” de que fala outro grande, Blaise Pascal, querido por von Balthasar. Juntamente com a Trindade, Maria e a Igreja, no centro de sua reflexão está sempre o “sério caso” da Cruz, cujo otimismo humano faz com que seja considerada de modo demasiado fácil e superficial.
Sobre a escrivaninha, embaixo de uma pequena foto do Papa João Paulo II, está aberto o Basel Zeitung, um dos muitos jornais do mundo que publicaram o último furioso ataque de Hans Küng ao Papa e a seus colaboradores diretos.
Texto da entrevista
Iniciando a entrevista, era natural lhe perguntar se tinha lido o texto daquele seu colega e conterrâneo — como ele, da região de Lucerna. Balança a cabeça como se estivesse triste e diz em voz baixa, olhando diretamente nos meus olhos:
Küng deixou de ser um cristão há um bom tempo. Faz pelo menos dez anos que este homem repete sempre as mesmas coisas. O único fato novo é o crescente tom polêmico. Na verdade, desde o tempo de seu livro Ser Cristão, Hans Küng não é mais cristão.
Ou seja, ele não é mais católico.
Não, ele não é mais cristão. Basta ler seus livros mais recentes, até mesmo o último sobre as outras religiões: Küng já não é cristão. Para ele, Jesus não é nada mais do que um profeta; o problema, portanto, se reduz a uma discussão sobre se era ou não um profeta maior do que Buda, Confúcio ou Maomé. Não por acaso foi ao Irã, convidado por Khomeini, para uma conferência, na qual ressaltou que há um só Deus e muitos profetas. Agora, ele diz claramente em seu livro, ainda não traduzido para o italiano, que o cristianismo é uma “via de salvação para muitos”.
Se é assim, é inútil insistir naquele “diálogo” que reivindica continuamente perante a hierarquia católica.
Por sua própria escolha, Küng se pôs fora da Igreja, portanto, não tem nada a dizer aos bispos. Na verdade, não tem nada a dizer nem aos protestantes. Considerando que o seu Instituto de Teologia Ecumênica não é reconhecido como católico, Küng representa apenas a si mesmo. Por causa disso, talvez, ele tenha mudado o discurso do ecumenismo entre os cristãos para o de ecumenismo com as religiões não-cristãs.
Ainda assim, tem-se a impressão de que ele continua a exercer uma notável influência: todos os principais jornais do mundo têm dedicado páginas e mais páginas às suas acusações contra Ratzinger e ao Papa João Paulo II.
O setor que ele representa é o de uma certa intelligentsia, mas sempre de menor peso: na Alemanha perdeu influência e raramente é convidado para conferências, especialmente em universidades. Por isso, viaja ao exterior: é conhecido como um bom orador e, acima de tudo, como um inimigo de Roma. E isso lhe atrai muita simpatia em certos ambientes.
A virulência do ataque ao atual Prefeito da Congregação para a Fé tem surpreendido até mesmo aqueles que sabiam das relações tensas entre ele e o professor Ratzinger, quando ambos ensinavam em Tübingen.
Livro-entrevista “A fé em crise?”, no qual o jornalista Vittorio Messori debateu temas cruciais para a Igreja com o então Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI.
Creio que a situação foi agravada pela perda progressiva da audição. Entre outras coisas, é mentira a acusação de que Ratzinger tenha mudado para “fazer carreira”, como ele diz. Eu conheço Ratzinger há muito tempo e sempre foi assim, sempre pensou assim. De qualquer modo, não é Ratzinger mas Küng quem ataca o Vaticano II, julgando-o “clerical”, estreito, insuficiente, para pedir, em seguida, um Vaticano III. Ratzinger é fiel ao Concílio e o seu livro A fé em crise? é a prova disso. Ratzinger estava certo em tudo.
A edição alemã foi lançada há algumas semanas. Já o leu?
Claro que o li. E o que eu penso? Há pouco a dizer: Ratzinger tem toda razão. Alguns chamam de pessimismo o que não passa de simples realismo: quem tem a coragem da verdade deve reconhecê-lo. Ninguém fala desta imensa, assustadora, deserção de padres e freiras: eles se foram, e continuam a sair aos milhares.
Assim, o senhor se reconhece na leitura feita por Ratzinger dos últimos vinte anos?
Pode-se perguntar se a culpa pelo que aconteceu é do Concílio (Ratzinger o isenta) ou se antes já existiam as condições que causaram a eclosão da crise. O certo é que João XXIII (o verdadeiro, não o mito criado após sua morte) não esperava que as coisas fossem seguir do modo que seguiram.
No entanto, o senhor está entre aqueles que prepararam o clima que levaria ao Concílio. Seu livro Derrubando as Muralhas, de 1952, causou-lhe grandes problemas com Roma.
Houve um mal-entendido sobre esse livro. Eu queria que “derrubassem as muralhas” não para que fugissem da Igreja, mas para permitir que a Igreja fosse sempre mais missionária, para anunciar com mais eficácia ainda o Evangelho.
Embora a intenção primordial dos Padres conciliares fosse missionária, tem-se a impressão que, ao invés de projetar-se ad extra, a Igreja tem se voltado ad intra, numa interminável discussão de cunho interno.
Sim, todos esses documentos que ninguém lê, esses papéis que eu mesmo sou obrigado a jogar fora todos os dias, todas essas estruturas, esses escritórios de nossas Conferências Episcopais e de nossas dioceses! As mesmas pessoas que exigiam a racionalização da Cúria Romana têm ajudado a criar uma miríade de mini-cúrias, nos arredores da Igreja. A burocracia clerical que sufoca a missão cristã.
Então, o senhor também está de acordo com as queixas sobre o perigo que representam as estruturas clericais hipertróficas para a Igreja, transformando-a em uma enorme burocracia com o fim em si mesma.
Claro. Devemos reler o Evangelho: Jesus sempre designa um serviço às pessoas, nunca às instituições. Daestrutura fundamental da Igreja fazem parte o povo e o seu bispo, e não os escritórios burocráticos. Nada poderia ser mais grotesco do que pensar em um Cristo que queria montar comissões! Devemos redescobrir uma verdade católica: na Igreja, tudo é pessoal, nada deve ser anônimo. No entanto, é atrás dessa estrutura anônima que se escondem agora tantos bispos. Comissões, subcomissões, grupos e escritórios de todos os tipos… Lamenta-se a falta de sacerdotes, e é verdade; mas milhares de padres estão ligados à burocracia clerical. Documentos, papéis que não são lidos, e que, em qualquer caso, não têm importância para a Igreja viva. A fé é muito mais simples do que tudo isso.
Mas por que, em sua opinião, isso acontece?
Talvez, tenham a impressão que assim enfrentam a crise, fazem alguma coisa. Estamos em um mundo tecnológico e agora operamos o computador. Em nossas dioceses, chegou a tecnologia. Veio despejar estatísticas de participação na missa, comunhões distribuídas… O que, aliás, não tem qualquer relevância. Este tipo de conta pode e deve fazê-lo somente Deus, para quem uma comunhão verdadeira vale mais que mil comunhões superficiais registradas no computador.
De acordo com muitos, o problema mais urgente hoje é definir o autêntico conceito católico de Igreja. Dizem que deveria ser discutido no Sínodo.
Talvez. O Vaticano II demorou muito para se manifestar sobre a estrutura da Igreja. A “lumen gentium” mencionada na constituição conciliar homônima não é a Igreja, é Cristo. É certo que, numa leitura superficial do Vaticano II, a Igreja torna-se mais um grupo social do que místico, sacramental. Vemos que desde o início a comunidade cristã tem uma estrutura, uma hierarquia, desejada por Cristo e fundamentada no colégio apostólico. Claro, o que as pessoas procuram hoje é o Cristo, não a Igreja, que em sua face visível não parece digna de credibilidade para muitos que estão lá fora. Em nossa pregação, mais do que nunca, precisamos colocar em relevo a singularidade de Jesus, sua pessoa: é Ele quem atrai os homens de todos os tempos. Mas, como o Concílio Vaticano II sublinha, com razão, não devemos esquecer que não há Cristo sem Igreja, e por isso cabe a nós mostrar a sua absoluta necessidade.
Além da questão da eclesiologia, que outros temas gostaria que fossem discutidos no próximo Sínodo extraordinário?
Talvez você se lembre da advertência do meu amigo Karl Barth, grande teólogo protestante, em seus últimos anos, numa conferência transmitida pelo rádio: ‘Católicos, não façam as bobagens, os absurdos, que nós protestantes temos feito desde o século passado!’
Na visão do senhor, dentre esses absurdos, qual é o mais urgente e que primeiro deve receber a atenção do Sínodo?
Talvez seja o problema que foi amplamente discutido na recente conferência em Roma sobre a vida de Adrienne von Speyr: o estudo da Bíblia, a exegese chamada ‘científica’. Os especialistas têm trabalhado muito, mas é um trabalho que não nutre a fé dos crentes. Devemos redescobrir a leitura simples das Escrituras, para por em equilíbrio a exegese ‘científica’ com a ‘espiritual’, não técnica, da grande tradição patrística. Eu não acho que o Sínodo poderia resolver este problema, no entanto, poderia dar uma contribuição.
Não se pode, no entanto, impedir por decreto o trabalho dos exegetas.
Na verdade, não é isso que proponho. Há sim um drama que envolve esses especialistas, muitas vezes bons e piedosos cristãos, mas eles devem fazer um trabalho do nível das universidades em que estão inseridos. E isso nem sempre é fácil. De fato, os estudiosos têm o direito de examinarem as Escrituras como um livro antigo entre muitos e, a partir daí, estudá-las com as mesmas técnicas usadas para os outros textos. Mas o que conta para a fé não é esta Escritura. O que importa é a Bíblia vista como o lugar onde o Espírito Santo fala de Cristo, de uma maneira nova, a cada geração.
A abordagem “científica” das Escrituras parece ter um fall-out, um impacto desconcertante na pastoral quotidiana.
Na verdade, as hipóteses dos especialistas chegam diluídas, se não, deformadas, aos sacerdotes e leigos, o que faz com que ocorram falhas. Eu ouvi recentemente uma homilia em que o pároco explicava o encontro dos discípulos com Cristo na estrada de Emaús, sentindo-se obrigado a avisar aos seus ouvintes que este episódio não foi ‘histórico’. E esta dúvida compromete a realidade, a materialidade da raiz da própria fé, ou seja, a historicidade da Ressurreição.
Talvez essa confusão entre as pessoas comuns é agravada pelo fato de que muitos não foram alcançados pela catequese. Professores relatam que os leigos se aglomeram em seus cursos de teologia sem conhecer a base. Ou seja, o catecismo.
Sim, tem que se retornar ao catecismo sério, autêntico. Mesmo aqui Ratzinger tem razão. Devemos redescobrir a estrutura imprescindível de toda verdadeira catequese: o Credo, o Pai Nosso, os Sacramentos, o Deus Criador, o Deus Redentor, o Espírito Santo que vive na Igreja. Não é mais aceitável que se façam textos ao gosto de cada um. Da nossa parte, na língua alemã, eles circulam na casa das centenas. Muitas vezes, nem sequer são referendados pelos bispos. A respeito dos “Teólogos da libertação”, digo: Jesus para esses não é mais do que um profeta falido.
Mas há catecismos oficiais (como o Pierres Vivantes na França) que foram aprovados integralmente pelas conferências episcopais nacionais. No entanto, receberam críticas de Roma e tiveram que ser revisados.
Retornando às estruturas anônimas: muitas vezes é da anonimidade dos escritórios e das comissões – mas não dos bispos com nome e sobrenome – que surgem essas aprovações. E eu receio que alguns bispos sintam medo de certas minorias agressivas. Diz-se que quatro ou cinco pessoas dominaram conferências episcopais inteiras, e isso, dentre as mais importantes e numerosas.
Deve-se reconhecer que os problemas com os quais se deparam certas conferências são espinhosos, de modo que é difícil chegar a uma unanimidade. A Conferência Episcopal do Brasil, por exemplo, tem de lidar com um caso complicado como o de Leonardo Boff.
Leonardo Boff, como Hans Küng, já não é mais um cristão.
O que o senhor diz é grave.
Não sou eu quem diz, é ele. Em seu livro, Paixão de Cristo, Paixão do Mundo, décima edição, admite que não acredita na divindade de Jesus. Sustenta o que já sustentava, no início do século, Albert Schweitzer. Como ele, Boff assumiu que a deificação de Jesus foi feita pelos discípulos depois da Paixão. Portanto, Jesus nada mais era que um profeta que pregava um Reino iminente. O Reino não veio, o fracasso foi total. Isso explicaria o grito na cruz: “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Exprime o desespero de um homem que falhou.”
Este ressurgimento de velhas teses liberais da Belle Époque europeia poderia confirmar a suspeita de que certas teologias da libertação foram produtos de exportação para países do Terceiro Mundo, depois que ficaram fora de moda entre os intelectuais ocidentais.
É verdade. O cerne das teologias da libertação vem da Europa, mas certa elaboração de sentido violento é depois concebida no próprio local. Um dos pais da teologia da libertação, o alemão J. B. Metz, fez conferências pela América Latina, mas, para muitos por lá, parecia abstrato demais: queriam transformar suas teorias em revolução armada. Creio que o documento da Congregação para a Doutrina da Fé tinha razão: não podemos nos servir da análise marxista como uma espécie de “ferramenta técnica”.
Discute-se a verdadeira influência sobre o povo de certas teologias da libertação: alguns afirmam que se trata de um fenômeno de uma elite.
Muitos pensavam que a revolução marxista seria realizada em poucos anos. Isso não aconteceu, mas agora se doutrina o povo, ‘conscientizando-o’ com publicações em que o centro é um ‘Cristo libertador’, o ‘Nazareno subversivo’. Ratzinger deu prioridade a esse fenômeno, porque ele toca nos pontos decisivos para a fé. É urgente que se faça algo por lá. Os teólogos não têm mais que se travestirem de sociólogos ou economistas. Parece-me que todas as teologias da libertação se esquecem de que a essência do Novo Testamento é a caridade: não precisa de mais nada, apenas vivê-la.
Mas muitos argumentam que a caridade é ajudar os pobres a fazer sua própria revolução.
Até mesmo o Papa disse que é necessário privilegiar os pobres (essa mensagem é evangélica), mas em Puebla também afirmou claramente que o cristão deve evitar a violência, que o clero não deve de forma alguma se misturar com a política partidária. Os ‘pobres de Javé’ da Bíblia não são de modo nenhum o proletariado de Marx.
Os problemas são tais e tantos que alguns, com base também no que vem acontecendo nos últimos meses, temem que, de Roma, a Igreja torne-se ingovernável.
O Vaticano II utiliza o termo ‘comunhão hierárquica’ para indicar a comunhão de todos os bispos com Roma, o símbolo visível da unidade. Deve-se perguntar se alguns episcopados ainda têm aquela ‘comunhão de amor’ com o Papa, de que fala, por exemplo, São Cipriano. Lefebvre e os seus não são os “verdadeiros católicos”.
Seu discurso, então, retorna às Conferências Episcopais.
Para elas, o Concílio dedica uma frase curta. No entanto, alguns as transformaram no centro de tudo. Quando a estrutura torna-se demasiado pesada, o bispo acaba sendo paralisado.
Qual é a sua opinião sobre o estado atual da liturgia?
Posso falar apenas pelo germânico. Tenho a impressão de que aqui ela é sóbria. Se for bem executada, ou seja, de forma verdadeiramente respeitosa em relação ao sagrado, é bem aceita pela maioria daqueles que ainda vão à igreja.
Uma resposta reconfortante porque contesta certos círculos fundamentalistas que fizeram da reforma litúrgica o seu cavalo de batalha. E o centro do movimento lefebvriano está bem aqui na Suíça. Esquecemos muitas vezes dos ataques duríssimos ao Papa e a Ratzinger que continuam vindo daquela direção.
Monsenhor Lefebvre e os seus não são os verdadeiros católicos, repito. O fundamentalismo de direita parece-me ainda mais incorrigível do que o liberalismo de esquerda. Eles pensam que sabem de tudo, eles não têm nada a aprender. Por outro lado, é contraditória a sua lealdade manifesta aos Papas, uma vez que dirigida apenas àqueles que lhes derem razão. Mas este ataque em pinça, de duas frentes, é típico das fases pós-conciliares.
Girando pela Europa e América do Norte, ficamos com a impressão de que as freiras — talvez quem mais sofre diante dessa crise — estão um tanto confusas.
Para se dar uma resposta adequada ao problema da mulher na Igreja, é necessário que a Mariologia, sóbria e boa, volte ao lugar que merece. Devemos lembrar a todos os católicos — a começar pelas mulheres — que, na Igreja, Maria ocupa um lugar mais elevado do que Pedro. A Igreja é uma realidade feminina e foi posta à frente de homens, os sucessores dos apóstolos. Maria, ou seja, o princípio feminino, é mais importante do que a própria hierarquia, que foi concedida ao componente masculino. Algumas freiras se deixam levar por certa teologia, feita por homens, e não percebem que muitos padres pensam na ordenação sacerdotal como uma forma de alcançar o poder temporal na Igreja. Mas isso é clericalismo. Maria — e não se trata de fazer sentimentalismo — é o coração da Igreja. Um coração feminino, que precisa ser revalorizado como merece, em equilíbrio com o serviço de Pedro. Isso não é devocionismo: é a teologia da grande tradição católica.
Portanto, a devoção mariana de João Paulo II, tão singular, também tem um significado teológico preciso.
Sem dúvida. O Papa sabe que o fundamento escondido da Igreja não é ele, mas Maria; não é por acaso que ele quis ‘Totus Tuus’ como lema de seu pontificado. Não há necessidade, talvez, de proclamar novos dogmas marianos, mas devemos redescobrir a riqueza dos que já existem e que são essenciais para o equilíbrio da fé autêntica.
As freiras estão especialmente em crise, mas o desconforto dos sacerdotes também é significativo. Quais são as principais causas?
Muitas vezes é muito difícil ser enviado a paróquias descristianizadas onde o padre não tem mais importância. Antes ele era o centro de tudo, agora ele tem de correr atrás dos fiéis para tentar mantê-los. Mas, para enfrentar e suportar esta situação, os sacerdotes devem ter outra formação.
O que quer dizer?
Precisamos voltar ao modelo tradicional de seminário, eu diria ‘tridentino’, mas prudentemente atualizado. Eu não permitiria que a maioria dos jovens seminaristas fossem enviados para estudar em universidades, como é feito atualmente. Eles têm que estudar em seminários autênticos, que sejam sérios, ‘clericais’. Eles são formados para o clero, preparam-se para um ofício que é cada vez mais difícil. Universidades externas não conseguem fazer esse serviço. O bispo deve ter a oportunidade de recriar os seminários de acordo com as indicações dadas por Roma e nomear professores de sua confiança. Mas, muitas vezes, mesmo que ele queira, ele é impedido por todas as estruturas que foram criadas ao redor.
O seu balanço pós-conciliar parece um pouco pessimista. Há áreas de luz e de sombra. Afinal, na sua opinião, qual é o balanço?
Há caos depois de qualquer Concílio. E também temos que considerar coisas novas, que são como plantinhas, pequenas mas vigorosas, cujas sementes foram lançadas pelo Vaticano II. Hoje, as cátedras de teologia são ocupadas por uma geração que tinha 18-20 anos em 1968, e que muitas vezes carrega no seu ensinamento um espírito liberal, de contestação. Enquanto isso, os grandes teólogos do passado foram esquecidos. Mas também há uma nova geração que está sendo formada, alguns jovens que se rebelaram contra o conformismo. Eles tem a intenção de fazer uma teologia que seja aberta às Escrituras e à grande tradição católica. Mesmo entre os teólogos que já estão na cátedra, há pessoas de muito fundamento que estão repensando a fé de um modo novo. Um bom trabalho nesse sentido foi feito pelo teólogo Ratzinger. Deixemos que o Espírito trabalhe: são os brotos espichando, estão nascendo e certamente não são contra o autêntico Concílio. Ao contrário, eles nasceram a partir dele.
Entre os sinais de esperança, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé também coloca os novos movimentos eclesiais.
E está certo. Entre outras coisas, eles são a possibilidade de a Igreja fazer uma teologia viva. Mas, em alguns deles, há uma explosão magnífica seguida por uma tentação de fechamento. O perigo, para esses, é o de se tornarem quase como seitas, de se fecharem sobre si mesmos, justamente quando precisamos, mais do que nunca, ‘derrubar os bastiões’, ou seja, projetar-nos em missão para o mundo.
Não seria um fechamento instintivo para tentar salvaguardar uma identidade católica que sente ameaçada?
Eu estou tentando construir um instituto secular no qual tenho a intenção de comunicar um espírito muito católico, uma identidade precisa de Igreja. Mas eu gostaria que fosse o mais aberto possível, a todos. A casa deve ser monitorada e mantida em ordem, mas as portas devem permanecer abertas para quem quiser entrar.
O senhor formou-se e trabalhou por muitas décadas na Igreja pré- conciliar. Viveu, então, sempre como um teólogo, os vinte anos de período pós-concílio. Quais as diferenças entre as duas fases?
Está certo meu amigo e professor De Lubac e tem razão Ratzinger quando se recusam a falar da Igreja ‘pré’ ou ‘pós’ conciliar. Há apenas uma Igreja. Eu vejo os prós e contras de antes e depois, mas o que sempre importa para mim é viver no coração da Igreja: esta não muda e nunca vai mudar. Não devemos pensar muito sobre a Igreja: é necessário antes de tudo vivenciá-la. Embora consciente de que sempre foi — e sempre será — um pequeno rebanho.
Em sua mesa há uma imagem do Papa. Isso confirma para mim, pois já era bem conhecida, a sua amizade, o seu profundo respeito por João Paulo II. E nós sabemos que esse sentimento é recíproco.
Sim, eu amo muito este Papa (João Paulo II). Mas, basicamente, não é isso que importa. Importante para toda a Igreja é o fato de que este homem vive de oração. Quando ele retorna de suas viagens massacrantes, quem o acompanha — desde prelados até jornalistas — fica atordoado com o esforço. Ele não. Está radiante. É a oração que o alimenta. Quando ele veio aqui na Suíça, alguém em Einsiedeln o insultou. Ele ficou em silêncio e então, não se sabe como, a pessoa desapareceu. Pouco depois, encontrei o Papa: foi a uma capela, prostrar-se diante do tabernáculo. Em seu retorno a Roma, eu o vi mais bem disposto do que nunca, descansado. ‘Santidade’ — perguntei-lhe — ‘Como pode, nunca se cansa?’ Rindo, ele respondeu: ‘Esta viagem para a Suíça foi apenas um treino para me preparar para a visita à Holanda’ (onde, de fato, a contestação clerical-progressista chegou ao paradoxo dos dominicanos atirarem pedras contra o Papa). Seu segredo é a oração, na qual está continuamente imerso.
Entre as coisas que mais parecem preocupar o Papa em suas viagens fora da Europa, está a queda do zelo missionário para com os não-cristãos.
Sim. E também é responsável por esta queda uma determinada versão, diluída — e, talvez, mal digerida — da teologia de Karl Rahner, a sua teoria do ‘Cristianismo Anônimo’. Rahner, talvez, tenha proporcionado a oportunidade de alguns teólogos expressarem o que já estava prestes a eclodir. Segundo eles, em cada homem, qualquer que seja a sua crença (ou a sua não-crença) já está a graça. A tarefa cristã seria apenas fortalecê-los em suas convicções. Em seguida, foi dada uma atenção exclusiva, e excessiva, para com a promoção do desenvolvimento sócio-econômico: é o Evangelho, de fato, a primeira riqueza que devemos dar aos pobres. Você não pode adiar o anúncio do Cristo morto e ressuscitado para quando os problemas econômicos estiverem resolvidos. O cristianismo não é “anônimo”, como gostaria Rahner.
Como suíço de língua alemã, o senhor sempre foi muito atento aos problemas das relações entre as várias denominações cristãs. Qual é a sua opinião sobre o atual momento ecumênico?
Infelizmente, o diálogo revelou-se ilusório, uma quimera. Não é possível se comunicar com igrejas que não tenham esse centro visível de unidade, concreta, como é o Papado. As igrejas protestantes estão dilaceradas em tantas denominações, e tantas divisões internas, que podemos nos entender com uma pessoa, um teólogo por exemplo; mas tudo pára por aí, porque, certamente, virão outros que dirão que não pensam do mesmo modo. Eu tive uma experiência pessoal com Karl Barth: após uma série de reuniões, de muito trabalho, parecia que tínhamos chegado a uma possível base para acordo. Mas quando tornamos isso público, eis que surgiu imediatamente outro professor de teologia de Zurique, e depois outro e outro, também protestantes, mas em completo desacordo com o que disse Barth. E isso vale para todo o mundo que surgiu da Reforma; ninguém poderá fazer do anglicanismo, por exemplo, uma igreja, porque tem muitas divisões internas.
Uma situação decepcionante. Espero que esse não seja o caso das Igrejas Ortodoxas do Oriente.
Infelizmente também se aplica a elas. Houve o abraço com Atenágoras, mas sempre haverá um outro metropolita, outro arquimandrita, um outro bispo que não estará de acordo. Mesmo no discurso ecumênico, portanto, é necessário realismo: a situação (como vimos recentemente com o documento de Lima sobre o Batismo, a Eucaristia e o Matrimônio, que custou muito trabalho e foi rejeitado por muitas igrejas) não permite qualquer ilusão.
Fonte: https://medium.com/igreja-hoje/hans-urs-von-balthazar-1905-1988-a1bb91a87412