Conteúdo Teológico do Batismo no Espírito Santo

Conteúdo Teológico do Batismo no Espírito Santo

O enfoque histórico que acabei de dar ao batismo no Espírito Santo não isenta de que se procure caracterizar essa experiência em seu conteúdo teológico. Ao que me parece, essa compreensão permanece obscura para a maioria dos participantes do movimento pentecostal católico, até porque eles o vivem muito mais como experiência do que como conhecimento.

Na Renovação Carismática, a expressão “batismo no Espírito Santo” tem dois significados. O primeiro, propriamente teológico, indica os efeitos dos sacramentos da iniciação cristã, notadamente o Batismo. Nesse sentido, todo membro da Igreja é batizado no Espírito Santo. O segundo sentido é de ordem vivencial e refere-se ao momento ou processo em que a presença ativa do Espírito, recebida na iniciação, se torna sensível à consciência pessoal.[1]

Parece evidente que, no cotidiano do movimento, a expressão é quase sempre usada no segundo sentido, já que os sacramentos não são identificados por ela. Além disso, a oração espontânea com imposição das mãos é, em alguns contextos, uma espécie de rito iniciático no movimento. Desse modo, no uso comum do termo privilegia-se o conteúdo histórico do batismo no Espírito.

Mas o significado teológico presente no ideário habitual do movimento carismático tende a invocar o Batismo sacramento. Assim, na Renovação Carismática, o batismo no Espírito é o momento em que o dom do Espírito Santo, presente potencialmente na pessoa desde seu Batismo, torna-se sensível à consciência individual. De acordo com esse entendimento, o sacramento do Batismo é uma verdadeira comunicação do Espírito, enquanto que, no evento “batismo no Espírito Santo”, há apenas uma “emergência” consciente, do poder recebido uma vez por todas na iniciação sacramental.

Ora, alguns exegetas católicos acham que essa concepção empobrece os textos bíblicos que falam de novas efusões do Espírito Santo em diferentes circunstâncias da vida.[2] Diante disso, Terra se pergunta: “Será verdade que o Espírito Santo já é dado em plenitude no batismo sacramental, contendo nuclearmente todas as graças e todos os carismas que haverão de emergir um dia em nossa vida na experiência espiritual consciente de nossa vivência carismática? Será o batismo no Espírito apenas uma emergência daquilo que já estava latente e não realmente uma nova Efusão do Espírito, um novo dom do Espírito Santo?”. E conclui: “A teologia católica não pode aceitar essa explicação”. Para ele, “seria teologicamente inexplicável que o poder do Espírito até então latente de repente se transformasse numa vivência pessoal por pura iniciativa de minha consciência subjetiva”.[3]

Se o indivíduo – esclarece Terra – tomou consciência do poder do Espírito Santo, é porque o Espírito começou a agir nele de um modo novo e, portanto, está presente de maneira nova. Isso significa que se produziu um novo envio do Espírito: “A efusão do Espírito pode acontecer repetidas vezes na vida de uma pessoa, levando-a a graus cada vez mais sublimes de santidade”.[4]

Essa compreensão redimensiona a explicação a respeito do batismo no Espírito Santo. Ele não é apenas uma tomada de consciência da graça em potencial da qual o indivíduo é portador, mas trata-se de uma nova incidência do Espírito Santo, com novos frutos produzidos.

Parece que a necessidade de explicar a experiência carismática absolutamente fora de um confronto com a doutrina tradicional, fez com que se demonstrasse essa efusão de forma atenuada, simplista até. Trata-se de um cuidado excessivo, provocado em grande parte pela implicância da hierarquia com o uso do termo e com a própria natureza da experiência carismática.

Prefiro seguir a tendência do raciocínio de Terra, perfeitamente alinhada à teologia católica, porém mais emancipada de um sacramentalismo estrito. Essa compreensão atribui certa autonomia ao batismo no Espírito Santo, não somente no seu aspecto histórico como também teológico, uma vez que o cerne de sua experiência contém um novo envio do Espírito, de natureza não-sacramental e, portanto, emancipada do ministério hierárquico.

Entretanto, essa autonomia não é necessariamente radical. Apesar de ser uma nova graça, o batismo no Espírito pode ser um desdobramento da incidência sacramental ou, mais precisamente, uma atualização da graça da iniciação. Mesmo considerando um novo derramamento, o sacramento do Batismo permaneceria como acontecimento referência. Ou será que o batismo no Espírito Santo não tem relação nenhuma com o sacramento do Batismo?

Um ponto de vista defendido por Francis Sullivan da Universidade Gregoriana de Roma, vê o batismo no Espírito como sendo uma graça especial, uma nova concessão do Espírito não relacionada a nenhuma contexto sacramental imediato. Ele sustenta que a visão sacramental do batismo no Espírito está baseada na hipótese de que uma concessão tão importante dos carismas apenas poderia acontecer dentro de um contexto sacramental.[5] Os efeitos do batismo no Espírito seriam grandes demais e permitir uma compreensão teológica a respeito baseada numa incidência não sacramental seria colocar em risco o primado da instituição e a necessária intermediação do ministério ordenado para a vida na graça.

Peter Hocken é outro que defende a autonomia radical do batismo no Espírito em relação à iniciação sacramental. Ele escreveu que “qualquer tentativa de se formular uma doutrina do ‘batismo no Espírito’ que possa harmonizar-se com o ensinamento católico sobre os sacramentos do batismo e sua confirmação, seria um esforço mal dirigido”.[6]

Mas no contexto estritamente católico, é muito difícil não relacionar o batismo no Espírito Santo ao sacramento do Batismo. No meio católico, há uma tendência para se interpretar o batismo no Espírito como uma atualização da graça sacramental. Entre os teólogos que defendem essa interpretação estão Leon Suenens, Herbert Muhlen, René Laurentin e Killian McDonnell.[7]

Atualizar significa tornar presente a graça de uma maneira nova, com novos resultados. Essa interpretação difere daquela explicação de que o batismo no Espírito seria apenas uma tomada de consciência da graça batismal, entretanto o mantém vinculado à iniciação cristã. Nessa linha de raciocínio, se uma pessoa fizer a experiência do batismo no Espírito antes de receber o sacramento do Batismo, caracteriza-se uma antecipação da graça sacramental. Isso seria, como tem sido, algo incomum.

Existem apenas dois momentos nos Atos em que o derramamento do Espírito apresenta-se visivelmente dissociado do Batismo. Em 10, 44-48, o Espírito Santo antecipa-se ao Batismo e à imposição das mãos. O derramamento aparece associado ao anúncio da Palavra e é tão claro que a ministração do Batismo só faz sentido como um sinal de pertença à Igreja, dado àqueles que já receberam o Espírito Santo “como nós”.[8]

O episódio de At 8, 14-17 é mais intrigante.[9] Nele, o Batismo é ministrado, mas os sujeitos não recebem o Espírito Santo. Que estranho! Confusos em virtude desta quebra de uma unidade aparente entre o Batismo e o derramamento do Espírito, “alguns comentadores dizem que aqui (…) é apenas uma manifestação externa do Espírito já recebido anteriormente ou que o texto se refere a uma segunda vinda do Espírito Santo”. O argumento não se sustenta: “É óbvio que a intenção de Lucas é dizer que o Espírito Santo não havia vindo sobre estes homens durante ou após o batismo, e que foi precisamente para remediar a situação que Pedro e João foram enviados de Jerusalém”.[10]

Outra explicação seria a de M. Quesnel, que sustenta que Lucas tenta fazer uma integração entre duas tradições diferentes sobre a iniciação cristã, uma do cristianismo gentio e outra de origem judaica. Havia, segundo Quesnel, uma diferença nos ritos e na compreensão dos seus efeitos entre as duas tradições. Ambas envolviam imersão na água, mas o rito cristão-gentio entendia a imposição das mãos, e não o batismo de água, como transmissor do Espírito. No procedimento com os samaritanos, assim como no batismo de Saulo (At 9, 17-18), do etíope (At 8, 26-40) e dos efésios (At 19, 1-17), foi seguida a tradição do cristianismo gentio e neles, portanto, o Espírito Santo só foi conferido pela imposição das mãos.[11]

Dunn, por sua vez, diz que as disposições dos samaritanos eram inadequadas o suficiente para anular o efeito do Batismo. Isso é ulteriormente sugerido pela singular expressão de Lucas, que os samaritanos ‘acreditaram em Felipe’ (8,12), uma indicação das reservas do autor dos Atos sobre a solidez do compromisso de fé assumido por aqueles. O argumento fica apenas no nível hipotético, causando também certa estranheza: se os samaritanos haviam crido em Jesus, que elemento poderia indispô-los ao recebimento do Espírito Santo? Embora Lucas alerte que os samaritanos creram “em Felipe”, o objeto da proclamação de Felipe era o Messias (cf. 8,5). Além disso, nos primeiros séculos do cristianismo não era normal que a pessoa que recebesse a iniciação cristã estivesse tão deficiente a ponto de nulificar o efeito do Batismo. Também não se deve, por outro lado, concluir que a imposição das mãos apostólicas seja necessária para a recepção do Espírito, pois Paulo recebeu o Espírito Santo pela imposição das mãos de Ananias (cf. At 9, 17).[12]

A explicação mais plausível talvez seja a de que essa identificação do derramamento do Espírito apenas com a imposição das mãos dos apóstolos, tenha a ver com o amplo interesse teológico de Lucas: “Foi aos apóstolos que Jesus havia dito ‘e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria’ (At 1,8). A missão de Felipe à Samaria não foi ordenada pelos apóstolos. (…) A demora da vinda do Espírito na Samaria e sua vinda pelos apóstolos Pedro e João, faz com que o esquema de outorgação de poderes por Jesus seja cumprido”.[13] Lucas haveria “forçado a barra” para ligar o recebimento do Espírito com a imposição das mãos dos Apóstolos. Os primeiros sintomas do exercício de um progressivo controle institucional sobre a graça?

Diante dessa controvérsia a respeito da natureza teológica do batismo no Espírito Santo, é possível harmonizar essas duas posições? Categoricamente, não. Ou será possível falar do sacramento do Batismo como acontecimento referência e, nesse sentido, o batismo no Espírito seria uma atualização da graça sacramental, ou se promove uma autonomia radical da experiência pentecostal em relação à iniciação cristã. Apesar de não ser possível conciliar as duas visões, ambas podem encontrar apoio dentro da tradição católica. A primeira, mais facilmente.

Sinto-me inclinado a seguir a interpretação de que o batismo no Espírito é uma atualização da graça sacramental. Isso se depreende de minha própria análise, privilegiando o aspecto histórico. Se o batismo no Espírito surge num momento de rotinização e se, conforme defendi, ele só se justifica por causa da perda da funcionalidade dos sacramentos da iniciação, também do ponto de vista histórico é muito difícil desvincula-lo totalmente do sacramento do Batismo.

Mas não deixa de ser interessante a interpretação que privilegia um contexto não-sacramental. Ela atribui alto grau de autonomia à incidência do Espírito Santo, apontando para o perigo de qualquer tipo de imperialismo sacramental.

A favor da posição de que o batismo no Espírito seja uma atualização da graça do Batismo conta o fato de que, na forma como se processa atualmente, o batismo no Espírito Santo ocorre predominantemente com aqueles que receberam o sacramento. Resta saber se o fenômeno continuaria ocorrendo em largas proporções caso os sujeitos destinatários não fossem batizados. Se isso ocorresse, o evento batismo no Espírito em indivíduos não batizados deixaria de ser uma exceção e obrigaria a reconsiderar a sua necessária vinculação com o sacramento.

À margem dessa discussão, encontra-se a necessidade premente de que o batismo no Espírito Santo continue sendo ministrado, proporcionando novas experiências de efusão e renovação cristã. Será preciso mesmo que se criem situações em que se promova essa experiência. A exigência atual é que se desburocratize essas oportunidades, não limitando a ação dos leigos por causa dos símbolos utilizados. Não há razões para se preocupar demasiadamente com as confusões que essa simbologia possa causar.

Além disso, creio ser conveniente que se incentive e espere as manifestações visíveis desse batismo, ou seja, os carismas proféticos. Embora não sejam realidades essenciais ao batismo no Espírito Santo,[14] eles evidenciam a ação de Deus e não deixam de ser úteis ao bem comum e à própria pessoa. Nesse sentido, a experiência atual de batismo no Espírito resgataria a expectativa anterior presente na iniciação cristã, funcionando como uma alternativa à rotinização sacramental.

McDonnell e Montague defendem que se o batismo no Espírito Santo e os carismas foram negligenciados na tradição da iniciação, então a estratégia pastoral mais adequada seria a tentativa de reincorporar esses elementos, inclusive os dons proféticos, no processo de iniciação contemporâneo.[15] Considero essa proposta de difícil aplicação. Creio que, pela própria estrutura da administração dos sacramentos, dificilmente eles poderiam alcançar algum grau de encantamento ou expectativa de manifestações carismáticas. O Batismo e a Crisma estão envoltos em uma formalidade que os impede de chegar a isso.

Mesmo se radicalmente separado daquele, o batismo no Espírito não nega o Batismo sacramento, mas chama a atenção para seu aspecto vivencial que, a meu ver, é o que mais interessa. A concepção mágica de um rito batismal que traz a salvação por si mesmo encontra-se, no momento, superada. O indivíduo dispõe de uma autonomia em relação à graça e isso não lhe será tirado em hipótese alguma, nem sob efeito da força sobrenatural do próprio batismo no Espírito Santo.

[1] Cf. RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA, Batismo no Espírito Santo, p. 38.

[2] Cf. João Evangelista Martins TERRA, Os carismas em São Paulo, p. 22.

[3] Ibid., p. 27.

[4] Ibid., p. 30.

[5] Cf. Kilian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 93-94.

[6] Apud Kilian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 95.

[7] Cf. Ibid., p. 96.

[8] Cf. Ibid., p. 36.

[9] A utilização desse texto para justificar o sacramento da Crisma está além de seus limites exegéticos (Cf. Kilian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 95).

[10] Kilian McDONNELL, George T. MONTAGUE, Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 31-32.

[11] Cf. Ibid., p. 32-33.

[12] Cf. Ibid., 34-35.

[13] Ibid., p. 34.

[14] Cf. Paul Josef CORDES, Reflexões sobre a Renovação Carismática Católica, p. 28.

[15] Cf. Iniciação cristã e batismo no Espírito Santo, p. 375.


 

Autor: Ronaldo José de Sousa – Comunidade Remidos no Senhor

Comunidade Javé Nissi

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